Dotado de extraordinário senso plástico e de um estilo que subordina o tema e a caracterização dos personagens às experiências com a sombra, a luz e a composição, Josef von Sternberg criou um Cinema de ilusão e sensualidade, no qual a poesia e a pintura se unem para expressar a beleza.
Ele nasceu, com o prenome de Jonas e sem o aristocrático “von”, a 29 de maio de 1894, em Viena, Áustria, numa família judia pobre. O “von” foi acrescentado em 1924, pelo ator-diretor Elliot Dexter, para os créditos de Por Direito Divino / By Divine Right, filme dirigido por Roy William Neill, no qual Sternberg trabalhou como co-roteirista e assistente de direção.
Aos sete anos de idade, o menino austríaco chegou aos Estados Unidos, para onde o pai emigrara em busca de fortuna. Decorrido algum tempo, a família retornou à terra natal; mas, em 1908, estava de novo na América. Em 1914, Sternberg empregou-se na World Film Corporation, nos estúdios de Fort Lee, New Jersey, onde começou exercendo a função de remendão de filmes, depois passou a montador, roteirista e assistente de direção, e chegou a ser consultor do patrão, William A. Brady.
Em 1917, alistou-se no Exército e fez filmes de treinamento para o Corpo de Sinaleiros. Após o armistício, trabalhou como assistente de direção de Emile Chautard em O Mistério do Quarto Amarelo / The Mystery of the Yellow Room / 1921, aprendendo com ele os rudimentos da composição fílmica. Em 1922, foi para a Inglaterra, prestando serviços à Alliance Productions. No ano seguinte, voltou a Hollywood e, como assistente de Roy William Neill em O Preço da Vaidade / Vanity’s Price / 1924, teve oportunidade de dirigir uma cena, muito elogiada pelos críticos.
Nesta ocasião, travou conhecimento como o ator inglês George K. Arthur, que desejava investir num filme modesto. Sternberg convenceu-o a utilizar um roteiro de sua autoria, The Salvation Hunters, cuja trama transcorria nas redondezas do porto de San Pedro, Califórnia. Ali viviam três seres desamparados – um rapaz (George K. Arthur), uma moça (Georgia Hale) e uma criança (Bruce Guerin) – a bordo de uma draga a vapor, molestados pelo cruel proprietário. Fugindo desta situação e das condições miseráveis do lugar, eles vão para a cidade, onde um rufião tenta prostituir a moça e o rapaz encontra a coragem para defendê-la. Nesta primeira realização, abordando de maneira simples a eterna luta entre o Bem e o Mal, já se evidenciam algumas características do estilo do diretor: a ênfase dada à atmosfera, personagens em poses pictóricas e referencias simbólicas – restos de um naufrágio na praia, a sombra da draga, sempre presente.
Charlie Chaplin viu o filme antes da estréia, recomendou-o aos sócios Mary Pickford, Douglas Fairbanks e Joseph Schenck, e eles resolveram distribuí-lo pela United Artists. Entusiasmada, Mary convidou Sternberg para dirigir seu próximo filme; porém depois desistiu do projeto.
A Metro-Goldwyn-Mayer então ofereceu a Sternberg um contrato de oito anos, logo dissolvido por acordo, depois de duas produções desastrosas: O Rapaz e a Cigana ou Ele e a Cigana / The Exquisite Sinner / 1925 e Amor, Vício e Virtude / The Masked Bride / 1925. Como as exigências artísticas e o método de trabalho do cineasta não se compatibilizaram com os desígnios da companhia, ambas as produções foram respectivamente refilmadas e completadas por outros diretores.
Posteriormente às desventuras de Sternberg na Metro, Chaplin procurou-o para orientar Edna Purviance, na sua “volta às telas”, em The Sea Gull, depois reintitulado A Woman of the Sea, para não ser confundido com a peça de Tchekov. Chaplin apreciava o humanismo sentimental de Charles Dickens e contratou Sternberg, porque pensara ter encontrado algo parecido em The Salvation Hunters. Todavia, ao perceber que ele substituira os valores humanos do roteiro original por valores eminentemente visuais – o motivo do mar é empregado como contraponto de uma história ocorrida entre pescadores – , Chaplin resolveu arquivar o filme.
Ao retornar de uma viagem ao exterior, Sternberg aceitou a incumbência de ser assistente do diretor Arthur Rosson na Paramount. Neste tempo, o chefe de produção B.P. Schulberg pediu-lhe para refilmar algumas cenas de Filhos do Divórcio / Children of Divorce / 1927 (Dir: Frank Lloyd) e o trabalho de “salvamento” ensejou-lhe a chance de dirigir Paixão e Sangue / Underworld / 1927.
Baseado num argumento de Ben Hetch, o filme conta a história de um gângster sentimental, “Bull” Weed (George Bancroft), que se sacrifica pela amizade a um advogado, conhecido como “Rolls Royce” (Clive Brook) e pelo amor da namorada “Feathers” (Evelyn Brent), os dois últimos apaixonados um pelo outro, mas reprimindo seus sentimentos por lealdade a Weed.
Embora marcas da vivência jornalística de Hetch tenham ficado em diversos incidentes, na construção dos personagens, na decoração do baile dos gângsteres e nos vestidos cheios de plumas de “Feathers”- prefigurando o tipo que o diretor faria desabrochar com Marlene Dietrich – sente-se a total criação de Sternberg, cuja mise-en-scène caracteriza-se pela economia de meios (que é marcante no assalto à joalheria, mostrado impressionisticamente: o relógio quebrado por tiros de revólveres, o empregado que se vira, a mão que recolhe os diamantes, a multidão se aglomerando), originalidade e disciplina.
O êxito de Paixão e Sangue fez com que os executivos da Paramount mantivessem Sternberg ocupado. Ele escreveu o argumento de Rua do Pecado / The Street of Sin / 1927 (iniciado por Mauritz Stiller e terminado por outros), concordou em remontar A Marcha Nupcial / The Wedding March de Erich von Stroheim, que tanto o influenciou, e, finalmente, se encarregou de dirigir Emil Jannings em A Última Ordem / The Last Command / 1928 que, juntamente com Paixão e Sangue e As Docas de Nova York, são as obras-primas do cineasta no período silencioso.
Em A Última Ordem, Jannings faz o papel de Sergius Alexander, visto primeiro como um figurante de Hollywood, lutando contra a velhice e um tique nervoso de balançar a cabeça incessantemente. Por acaso, o diretor Leo Andreyev (William Powell), ao escolher o elenco para um drama de guerra, vê a fotografia de Sergius e o reconhece como o ex-Comandante Geral do Exército Russo, que o havia prendido em 1917 como agitador revolucionário e causado indiretamente a morte de sua companheira Natascha (Evelyn Brent) – fatos apresentados em retrospecto. Para humilhar o antigo adversário ou também pela inspiração de que ele seria o ator ideal, Andreyev coloca Sergius como general no filme. No decorrer de uma cena, na qual enfrenta um soldado insubordinado, o velho, confundindo fantasia e realidade, pensa que está de novo nos dias de glória, excita-se, e morre dando a sua última ordem de comando.
O relato contém boas observações cáusticas sobre aspectos da capital do Cinema – o presunçoso assistente do diretor, “a fila do pão” dos extras – e da aristocracia militar – o desfile da tropa só para impressionar o Czar, o jantar dos oficiais, etc. O filme vale sobretudo pela virtuosidade interpretativa de Jannings, realmente notável, ao mostrar as duas vidas de Sergius e as duas personalidades – a do arrogante general czarista e a do decrépito e obscuro figurante – que elas produzem no mesmo homem. Sob o prisma visual, não se vêem muitos requintes decorativos, porém manifestam-se longos movimentos de câmera e lentas fusões muito inspirados e o interesse crescente pelo tratamento fotográfico sensual da mulher, representada pela presença fascinante de Evelyn Brent.
Tentando repetir o sucesso de Paixão e Sangue, O Super Homem / The Dragnet / 1928 é outra história de gângsteres, tendo como personagem principal um detetive durão, “Two Gun” Nolan (George Bancroft), no encalço dos chefes de quadrilha de Nova York, entre eles, “Dapper” Frank Trent (William Powell), que tem uma protegida, The Magpie” (Evelyn Brent). No decorrer da ação, Nolan, pensando ter sido responsável pela morte do amigo “Shakespeare” Donovan (Leslie Fenton) durante um tiroteio com os bandidos, pede demissão da polícia e se entrega à bebida. Entretanto, “The Magpie” descobre que fôra Trent o verdadeiro culpado e conta tudo ao detetive, sobrevindo o acêrto de contas.
A maioria dos historiadores considera o filme como uma continuação pouco feliz de Paixão e Sangue e, até que apareça uma cópia do mesmo, temos que acatar tal veredicto.
Em seguida, Sternberg realizou Docas de Nova York / Docks of New York / 1929, cujo enredo melodramático tem como figura central Bill Roberts(George Bancroft), robusto foguista de um navio a vapor que, no dia de folga em terra, salva uma prostituta (Betty Compson) de suicídio por afogamento. Após uma bebedeira, ele se casa com ela numa cerimônia grotesca, celebrada na taverna do cais; porém, na manhã seguinte, resolve partir, deixando-a iludida pelo sonho de uma nova vida. Quando o navio está saindo do porto, Bill percebe que a ama e nada até a praia, chegando a tempo de livrá-la da acusação de furto do vestido, que ele próprio retirara indevidamente de uma loja de penhores.
Graças à construção clássica de tempo, lugar e ação, o filme ganha muita concentração dramática e os personagens, embora simples, tornam-se atraentes, pela revelação do amor que os transfigura e leva Bill à responsabilidade. Tal como em The Salvation Hunters, o diretor mostra que não está preocupado com as condições sociais das docas, mas sim com a transição emocional do protagonista. Os ambientes da sala de máquinas do navio, do porto e da taverna são evocados pela admirável fotografia e disposição de elementos fotogênicos: cordas, redes, fumaça, neblina, reflexos da luz dos lampiões sobre as águas, clarões no interior das caldeiras, âncora jogada no mar, um grande leme de madeira.
O último filme mudo de Sternberg, O Romance de Lena Smith / The Case of Lena Smith / 1929, tem como local de ação Viena por volta de 1894 e relata os sofrimentos de uma pobre campesina (Esther Ralston). Ela se casa com um oficial devasso (James Hall) e, depois do nascimento do filho, vai trabalhar na casa do marido como empregada, escondendo a verdade do sogro (Gustaf von Seiffertitz) enquanto o rapaz volta para a vida desregrada. Os que puderam ver o filme (dado como perdido), louvaram a ˜forte qualidade atmosférica” e a reconstituição acurada da época, certamente facilitada pelas reminiscências da infância do diretor.
Sternberg aderiu ao cinema falado com O Homem de Mármore / Thunderbolt / 1929, pondo em evidência o triângulo amoroso formado pelo gângster “Thunderbolt” Jim Lang (George Bancroft) , sua garota “Ritzy” (Fay Wray) e Bob Morgan (Richard Arlen), um bancário apaixonado por ela, ocorrendo no desenlace a compreensão do gângster com relação ao amor dos dois jovens.
Neste filme, Sternberg faz uma experiência com o som assincrônico, que Eisenstein e Pudovkin propugnaram em vários manifestos na época. Nas cenas da prisão, ele usa a música – representada pelo cantor e o coro nas celas da morte – para criar um clima. Uma indicação do que realmente interessava ao diretor, é dada numa cena, na qual ele emprega o som contrapontualmente. Quando George Bancroft foge de uma batida da polícia e se esconde num bar do Harlem, ouvem-se os tiros fora do quadro, porém a câmera permanece focalizada em Fay Wray, sentada sozinha na mesa, apertando seu casaco de peles. Para Sternberg é a mulher que interessa mesmo durante uma perseguição crucial num filme de gângster.
Em 1930, aproveitando a primeira parte do romance de Heinrich Mann, Professor Unrat e influenciado pelo Kammerspiel e pelo Expressionismo, Sternberg realiza na Alemanha, O Anjo Azul/ Der Blaue Angel, obra decisiva na sua carreira. Trata-se de um estudo psicológico sádico e sentimental, sobre a degradação lenta e sistemática de um professor, Immanuel Raht (Emil Jannings), seduzido pelo charme perverso de uma cantora do music-hall, Lola-Lola (Marlene Dietrich), tipo de caracterização com a qual o grande ator germânico já estava familiarizado (A Última Gargalhada / Der Letzte Mann / 1924, Variété / Varieté / 1925).
O filme tem notáveis composições, cenários repletos de detalhes, luminosa fotografia em claro-escuro, simbolismos – o palhaço que observa constantemente o colega temporário, o enorme relógio com a procissão de figuras alegóricas -, música e canções integradas na marcha dos acontecimentos e uma atmosfera envolvente e perturbadora. O andamento da narrativa é um tanto vagaroso, devido em parte ao método de interpretação de Jannings do cinema mudo, mas este anacronismo é compensado pela grandeza trágica que ele confere ao personagem.
O Anjo Azul registra o início da colaboração entre Sternberg e Marlene Dietrich, uma das mais artisticamente produtivas da História do Cinema, “contada pela câmera” em sete filmes, que constituem a fase áurea do cineasta no cinema sonoro.
O primeiro filme de Marlene Dietrich nos Estados Unidos, Marrocos / Morocco / 1932, revela novamente a capacidade do diretor de combinar o som e a imagem, extraindo o máximo de efeitos. É uma aventura romântica com incidentes absurdamente implausíveis, na qual uma cantora de cabaré, Amy Joly (Marlene Dietrich), renuncia a uma vida de luxo ao lado de um rico admirador, La Bessière (Adolph Menjou) pelo amor de um legionário chamado Tom Brown (Gary Cooper).
Acionando o tema da intensidade da paixão, Sternberg cria – em torno da personalidade andrógina de Marlene e lacônica de Cooper – um clima exótico e lascivo, que evidencia o seu refinamento estético. O filme inteiro é uma série de encontros e desencontros, ficando na lembrança algumas cenas antológicas: a do cabaré, quando Marlene , vestida de casaca e cartola, beija na boca outra mulher e recebe uma flor, que depois atira para Cooper; o frêmito da personagem ao ouvir os tambores do regimento e as mãos nervosas quebrando o colar de pérolas; o final falso mas sublime, no qual ela tira os sapatos e, com os pés na areia, segue o amante, tal como as mulheres árabes, resignadamente, acompanham os homens no deserto.
Após a imensa repercussão de O Anjo Azul e Marrocos, os produtores concederam maior liberdade a Sternberg, e ele pôde escrever um drama de espionagem na Primeira Guerra Mundial, Desonrada / Dishonored / 1931. A heroína, Magda (Marlene Dietrich), prostituta recrutada pelo Serviço de Inteligência austríaco, para desmascarar um espião russo, Tenente Kranau (Victor MacLaglen), tem todas a aparência de uma Mata-Hari. Entre esses dois seres nasce um amor impossível, bloqueado pelo dever: e ela trai a pátria, permanecendo fiel à paixão.
Pictoricamente, o filme é uma extensão dos trabalhos anteriores de Sternberg, notando-se os cenários atravancados de objetos e um baile à fantasia enfeitado de serpentinas, antecipando as cenas de carnaval em Mulher Satânica. O único gesto que quebra o distanciamento emotivo, vem de um personagem secundário, o jovem oficial (Barry Norton), que deve comandar o pelotão de fuzilamento. Magda lhe pede um espelho, e ele lhe estende a lâmina brilhante de seu sabre. No momento da execução, o jovem se rebela e pronuncia um inflamado discurso pacifista enquanto a condenada aproveita o incidente, para retocar a maquilagem e ajustar as meias de náilon, num toque de humor sardônico.
Depois que a Paramount rejeitou a adaptação feita por Serguei Eisenstein do romance An American Tragedy de Theodore Dreiser, Sternberg foi convidado, para salvar o investimento de cerca de meio milhão de dólares. Ele resolveu elaborar um novo roteiro com Samuel Hoffenstein, dando mais importância aos fatores pessoais que levam o jovem arrivista à cadeira elétrica do que aos aspectos sociológicos e condensando os acontecimentos do livro por meio de cenas curtas e elipses, pelo menos até o julgamento, quando se fratura a fluência rítmica.
Além das belas imagens recorrentes da água batida pela brisa, que servem como determinantes estilísticas do destino de Clyde Griffith (Phillips Holmes) e da sequência silenciosa na fábrica, na qual Roberta Alden (Sylvia Sidney), aceitando a sedução, passa furtivamente o bilhete para o rapaz e a gente vê o sorriso de triunfo nos lábios dele, não há outros instantes de brilho cinematográfico em Uma Tragédia Americana / An American Tragedy / 1931, a não ser um ou outro primeiro plano de Sylvia Sidney e Frances Dee (Sondra Finchley, a moça da alta sociedade com quem Clyde pretendia viver, depois de deixar a esposa proletária morrer afogada no lago).
O Expresso de Xangai / Shanghai Express/ 1932 foi o filme mais popular de Sternberg, no qual ele usa ornamentos exóticos para falar da necessidade de se colocar o amor acima das convenções sociais. Num trem que atravessa a China conturbada pela guerra civil, Madeline (Marlene Dietrich) encontra o oficial britânico, Donald Harvey (Clive Brook) com quem – antes de mais de um homem lhe mudar o nome para Shanghai Lily – mantivera um romance, infelizmente desfeito, por falta de confiança dele. Ela ainda o ama e, para lhe salvar a vida, consente em entregar-se a Henry Chang (Warner Oland), líder dos rebeldes chineses. Sem saber por que fora solto, Harvey despreza Lily; porém depois volta para buscá-la, aceitando-a incondicionalmente.
Sternberg retrata o ambiente com o máximo de estilização e entrosa mais do que nunca o cenário com a ação e os personagens, pondo em prática a sua teoria da emocionalização” dos espaços vazios nos três planos de profundidade de campo, como ocorre, por exemplo, no momento em que o trem passa por uma rua estreita da cidade ou nas cenas do interior da casa, onde Chang detém os passageiros. A iluminação – principalmente no close-up das mãos de Shanghai Lily unidas para uma oração, nos fuzilamentos noturnos e na morte de Chang, apunhalado no quarto cheio de redes – é primorosa, graças à colaboração de Lee Garmes que deu grande apoio ao cineasta também em Marrocos, Desonrada e Uma Tragédia Americana, e desta vez recompensado com o Oscar.
O filme seguinte, A Vênus Loura / Blonde Venus / 1932, é um canto de amor materno. Helen (Marlene Dietrich), ex-cantora alemã, esposa de um químico americano, Edward Faraday (Herbert Marshall), torna-se mãe devotada, dedicada às tarefas do lar. Quando o marido fica contaminado pelo rádio, ela volta aos palcos, para poder custear o tratamento dele na Europa. Durante a ausência de Edward, Nick Towsend (Gary Grant), um jovem político, oferece amparo a Helen. Ao retornar, Edward , ciente da infidelidade da esposa, toma providências para obter a guarda do filho. Helen foge com o menino, atravessando o Sul dos Estados Unidos, cai na prostituição, e depois causa sensação nos teatros de Paris. No final, o próprio Towsend reaproxima-a do marido que, após certa hesitação, resolve perdoá-la.
Sternberg transcende o enredo de folhetim lacrimogêneo com sua técnica decorativa, líricas fusões e a criação de dois números musicais inesquecíveis: num deles, Marlene entra em cena vestida de gorila, acompanhada por um coro de falsas africanas e, a certa altura, começa a tirar a fantasia, colocando uma peruca loura para cantar “Hot Voodo” com a voz rouca e os trejeitos que a notabilizaram; no outro número, de cartola e casaca brancas, Marlene passa em revista com ares de lésbica um grupo de beldades, transitando por arcos góticos e esculturas de monstros.
Em 1934, Sternberg realiza a sua obra-prima no cinema sonoro, A Imperatriz Galante / The Scarlet Empress, na qual recria, à sua maneira, a subida de Sofia Frederica de Anhalt-Zerbst (Marlene Dietrich) ao trono da Rússia, metamorfoseando-se, após o matrimônio com Pedro, o Grão-Duque demente (Sam Jaffe) e outra desilusão sentimental com o másculo Conde Alexei (John Lodge), na grande imperatriz Catarina II.
Numa explosão de energia criativa, o diretor concebe um esplendor bárbaro e barroco, em cenários entupidos de estátuas torturadas, ícones bizantinos, colunas espiraladas, móveis retorcidos, portas de ferro monumentais e uma quantidade enorme de velas, todo este frenesí estéticofocalizado por uma câmera esperta. O audacioso e sensual exercício de estilo atinge o auge no ritual do casamento de Catarina e Pedro na cátedral de Kazan, soberbamente iluminado por Bert Glennon (fotografo de Paixão e Sangue e A Vênus Loura), um trecho maravilhoso de cinema puro. Complementando o deslumbramento formal, Marlene e Jaffe revelam com a maior eficiência os contrastes entre a inocência e a perversão, a beleza e o terror; ela demonstrando que nunca foi uma atriz absorvida pelo seu mito mas consciente das possibilidades de expressão, que lhe oferecia o exigente mentor.
Apoteose suntuosa da parceria Sternberg-Marlene, Mulher Satânica / The Devil is a Woman / 1935, baseia-se no romance de Pierre Louys – La Femme et le Pantin – sobre o relacionamento sadomasoquista entre Concha Perez (Marlene Dietrich) e Don Pasqual (Lionel Atwill), a cortesã sedutora e o velho amante, completamente dominado e humilhado. Através de cinco retrospectos, segue-se o itinerário da perdição de Don Pasqual, que se desenrola numa Espanha imaginária, onde Concha desfila com trajes extravagantes e apetrechos – xales, véus, flores e enormes pentes nos cabelos –, frequentemente enquadrada em formosos close-ups. Nas cenas do trem abarrotado de gente, quando vemos Concha encapuzada como freira e segurando uma cesta com um ganso, impassível no meio da balbúrdia e nas cenas do esfuziante carnaval, quando aparece Antonio (Cesar Romero) – rival no amor e depois num duelo, de Don Pasqual – Sternberg como de hábito, tridimensionaliza o espaço, obtendo grande vigor atmosférico.
Quando B.P. Schulberg transferiu-se para a Columbia, Sternberg acompanhou-o, comprometendo-se a realizar dois filmes para o estúdio. O primeiro foi Crime e Castigo / Crime and Punishment / 1935, honrada adaptação do romance de Fiodor Dostoievski, concentrada no jogo de gato e rato psicológico entre o Inspetor Porfírio (Edward Arnold) e o estudante Raskolnikov (Peter Lorre), suprimindo personagens importantes (Marmeladov) e tratando outros (Sonia, Avdotya, Luzhin, Sidrigailov) sumariamente.
Aceitando-se a opção pela intriga policial com a ausência da dimensão filosófica da obra literária, o espetáculo é bastante razoável, tendo a seu favor os desempenhos de Lorre e Arnold e a qualidade da iluminação de Lucien Ballard, o discípulo que auxiliara Sternberg, quando este assumiu a direção de fotografia de Mulher Satânica.
O outro filme para a Columbia, O Rei se Diverte / The King Steps Out / 1936, também fotografado por Ballard, é uma opereta sobre o namoro do jovem imperador Franz Josef (Franchot Tone) com Cissy (Grace Moore), prejudicada pelas condições modestas do estúdio. Sternberg até que se esforçou para dar leveza às cenas, fazendo com que permanecessem pouco tempo na tela e acompanhando-as com fundo musical constante; porém sente-se a falta do lustro, do brilho, que somente a Paramount ou a Metro-Goldwyn-Mayer poderiam proporcionar à produção.
Subsequentemente ao arquivamento de I Claudius, após oito semanas de filmagem (maiores detalhes no documentário da BBC, The Epic That Never Was / 1966), Sternberg assinou contrato com a Metro-Goldwyn-Mayer, onde rodou cenas adicionais para A Grande Valsa / The Great Waltz / 1938 (Dir: Julien Duviviver) e se incumbiu de dirigir Hedy Lamarr, num filme inicialmente intitulado New York Cinderella – mas este só seria realizado como Esta Mulher é Minha / I Take This Woman / 1940, sob a responsabilidade de W.S. Van Dyke.
Ainda na Metro, Sternberg fez Sargento Madden / Sergeant Madden / 1939, melodrama criminal cheio de clichês e sentimentalismo, sobre um sargento da polícia de Nova York, Shaun Madden (Wallace Beery), e seus dois filhos, o verdadeiro, Dennis (Alan Curtis) e o adotivo, Albert (Tom Brown). Shaun sonha em ver os dois como seus colegas. Ambos os filhos entram para a Academia de Polícia, porém Dennis, por causa de seus métodos brutais, tem um fim trágico. Sem ter completo controle sobre a realização, Sternberg pelo menos extraiu de Wallace Beery, uma interpretação introspectiva, diferente daquelas atuações exageradas que ele costumava apresentar.
Sternberg conseguiu certa independência em Tensão em Xangai / The Shanghai Gesture / 1941. Este é um filme de desespero pungente, que traz de volta todas as obsessões do cineasta – a mulher, o desejo, a paixão e a degradação – e o seu universo estranhamente ambíguo. Extirpando as situações mais chocantes da peça de John Colton, ele envolve a história numa atmosfera extraordinariamente densa de mistério exótico, erotismo e degeneração, tratando o assunto com uma espécie de altivez moral e um toque de ironia.
A ação nos reconduz a uma China romanesca como a de O Expresso de Xangai, recriada pelo esplêndido talento decorativo do diretor, que explode no jantar do Ano-Novo chinês, no qual a grande mesa de banquete, as jovens suspensas nas gaiolas de vime, os candelabros e os assombrosos murais pintados por Keye Luke – conhecido como o filho mais velho do Charlie Chan – servem de pano de fundo opulento para a climática aparição de “Poppy” Smith (Gene Tierney), o ser inocente destruído pela diabólica e implacável vingança de Mother Gin Sling (Ona Munson) contra seu ex-amante Sir Guy Charteris (Walter Huston).
Jamais Sternberg desenvolveu um personagem masculino de maneira tão voluptuosa como o Dr. Omar (Victor Mature), “doutor em nada, poeta de Sodoma e Gomorra”, tanto este como “Poppy”, exemplarmente fotografados por Paul Ivano. E para sugerir a descida ao antro de intriga e luxúria, ele usa o constante retorno à mesa da roleta no centro da sala circular do cassino, como um leitmotif pictórico semelhante às imagens da draga em The Salvation Hunters.
No decorrer dos anos quarenta, Sternberg fez ainda The Town / 1943, documentário para o esforço de guerra; prestou serviços à série The American Scene; foi “consultor visual” de Duelo ao Sol / Duel in the Sun / 1945 e, no final da década, contratado por Howard Hughes, realizou Estradas do Inferno / Jet Pilot / 1951 e Macau / Macao / 1952.
Estradas do Inferno é uma farsa sentimental, com argumento ridículo, sobre a Guerra Fria, protagonizada por John Wayne e Janet Leigh e Macau um melodrama noir rotineiro e confuso, tendo como intérpretes Robert Mitchum e Jane Russell. Ambos os filmes foram mutilados pelos produtores, verificando-se a fertilidade criativa do diretor apenas nas metáforas subrepticiamente introduzidas no primeiro filme (vg. o ruído do avião a jato no momento do beijo) e no gosto precioso de alguns enquadramentos no segundo. O nome de Nicholas Ray não aparece nos créditos de Estradas do Inferno, mas sua participação nas últimas etapas da produção foi confirmada tanto por Sternberg como pelo produtor Alex Gottlieb.
A derradeira realização de Josef von Sternberg – que viria a falecer dezesseis anos depois, a 22 de dezembro de 1969 -, The Saga of Anathan / 1953, inspira-se num fato real – sobreviventes de um avião de guerra japonês recusaram-se a acreditar na capitulação de seu país e passaram sete anos numa ilha deserta, até serem recolhidos por um avião americano – acrescentando um casal, cuja mulher (Akemi Negishi), apesar da vigilância do marido (Tadashi Suganuma), desperta o desejo dos homens, levando-os à luta pelo poder, à deterioração moral e à morte.
A ação transcorre numa selva fantástica, constituída de gigantescas raízes de cedros, musgos e trepadeiras entrelaçados, formando sombras intrincadas, no meio das quais aparece e desaparece a jovem sensual – consagrada como “Rainha das Abelhas” por um dos que queriam possuí-la – atiçando os instintos de vida e morte. Neste cenário, propositadamente irreal, que serve como microcosmo da sociedade, o diretor, tal como explicou na autobiografia Fun in a Chinese Laundry (Mercury House, 1965), faz uma experiência de psicologia indireta de massa, alertando-nos para a necessidade de “reinvestigarmos nossas emoções e a confiabilidade de nossos controles sob circunstâncias desfavoráveis”.
Escrevendo e narrando um comentário em tom de pseudo-reportagem e se encarregando também da fotografia, Sternberg revela-se, mais uma vez, um autor completo, último “gesto de arrogância” de um cineasta que tem lugar garantido entre os grandes artistas do Cinema.