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KEN MAYNARD

Ele foi um dos cowboys do Cinema mais populares nos anos 20 e início dos anos 30, colocando-se logo abaixo de Tom Mix e Buck Jones como um dos três maiores astros do gênero naquela época.

Ken Maynard (Kenneth Olin Maynard) nasceu em 21 de julho de 1895 em Vevay, Indiana, e não em Mission, no Texas, como tem sido divulgado. Além de Ken, Willliam H. Maynard e sua esposa, Emma May Stewart tiveram três filhas, Trixie, Willa e Bessie e, em 20 de setembro de 1897, um segundo filho, ao qual eles deram o nome de Kermit.

Muitos dos anos de infância de Ken e Kermit foram vividos em Columbus, Indiana. Enquanto Kermit optou por ficar em Indiana, onde chegou a cursar a Universidade, o irmão mais velho rumou para o Oeste.

Segundo algumas biografias, Ken teria servido o Exército em Camp Knox (hoje Fort Knox) por ocasião da Primeira Guerra Mundial;  teria atuado em circos como Kit Carson Show e Pawneee Bill Wild West Show, no qual desfilava numa parada, vestido de Buffalo Bill; teria arrebatado o prestigioso troféu “All Around Cowboys” no Pendleton Oregon Roundup, que resultou num contrato lucrativo com o Ringling Bros Circus em 1921; teria conhecido Buck Jones em Hollywood e, impressionado com o sucesso dele na Fox, decidido a fazer carreira no Cinema; foi  ajudado por Tom Mix a aparecer num filme de Dustin Farnum, Redenção de uma Alma / The Man Who Won / 1923, dirigido por Willliam A. Wellman. Talvez algumas dessas informações não sejam verdadeiras.

Em 14 de fevereiro de 1923, Ken casou-se com Jeanne Knudsen em Los Angeles, mas o casamento durou pouco. Em 1924, teve a sua grande chance na tela, personificando um dos mais célebres cavaleiros da História dos Estados Unidos, Paul Revere, em Janice Meredith / Janice Meredith, superprodução da Cosmopolitan Pictures de William Randolph Hearst, rodada em Nova York e estrelada por Marion Davies.

Contratado por sua extraordinária habilidade como cavaleiro, Ken faturou mil dólares por semana e voltou para Hollywood, crente de que iam chover convites para o Cinema; mas ninguém o procurou, a não ser um produtor independente, Clifford S. Elfelt, cujos filmes eram distribuídos pela Davis Distributing Division. Elfelt ofereceu-lhe uma série de oito faroestes, dos quais somente cinco foram feitos, porque a firma faliu.

Começando com Um Prêmio Tentador / $50,000 Reward / 1924, esses westerns ajudaram a estabelecer Maynard como uma personalidade cinematográfica. Embora feitos com orçamentos limitados, os filmes tinham muitas cenas de ação com as acrobacias incríveis de Ken na sela de seu cavalo.O único problema era o seu cabelo partido no meio; os publicistas da companhia achavam que assim ele parecia um barbeiro e queriam mudar o seu penteado. Mas Ken recusou terminantemente.

Em 1926, ele foi contratado pela Associated Exhibitors, para fazer um filme fora do gênero, Estrela do Norte / North Star, co-estrelado pelo inteligente pastor alemão Strongheart, o rival mais célebre de Rin-Tin-Tin. Nesta ocasião, o jovem de Indiana casou-se no palco de filmagem com Mary Leeper, sua terceira esposa, pois, antes de Jeanne Knudsen, ele havia contraído matrimônio com Arlie Green Harlan.

No mesmo ano, Ken ingressou na First National onde, como astro-cowboy número um, tentou igualar, com seu magnífico palomino Tarzan, tudo o que Tom Mix e Tony ou Buck Jones e Silver faziam.

Maynard os ultrapassou nas cenas arriscadas de ação, praticando piruetas impossíveis na sela de Tarzan, um animal que podia dançar, balançar a cabeça para indicar sim ou não, fingir-se de morto, acionar uma campainha de alarme e salvar o dono de qualquer desastre ou das garras dos bandidos, levar uma grande queda e se levantar de novo e, até mesmo, servir de casamenteiro entre Ken e a mocinha. Ken comprou Tarzan por cinqüenta dólares e o batizou com este nome, inspirado no herói criado por Edgar Rice Burroughs. Mais tarde, Burroughs entraria com uma ação judicial contra Maynard, alegando que este roubara o nome do “Rei das Selvas’. O caso foi decidido em 1935. Burroughs perdeu.

Foram 18 westerns na First National, até que Carl Laemmle o levou para a Universal. Após uma primeira série de filmes, nos quais Ken começou a cantar, podendo ser considerado um singing cowboy pioneiro, Laemmle, aborrecido com os casos que o ator criava nas filmagens e ainda inseguro quanto á lucratividade dos filmes sonoros de faroeste, não renovou seu contrato. Ken passou três anos trabalhando em companhias independentes como a Tiffany e a KBS e, finalmente, a Universal o trouxe de volta.

O produtor dos filmes de Maynard na First National foi Charles R. Rogers. Ele era um fã do cowboy e resolveu explorar mais completamente o jovem cavaleiro de circo com a inestimável ajuda do produtor associado, Harry Joe Brown, do roteirista Marion Jackson e de Albert S. Rogell, o principal diretor da série. Graças a este grupo foram realizados dois grandes westerns de Ken Maynard como O Destemido / Senor Daredevil / 1926 e A Horda Vermelha / The Red Raiders / 1927. Este último  eu tive a sorte de assistir.

Em A Horda Vermelha, o Tenente John Scott (Ken Maynard), jovem oficial do Exército Americano é designado para um posto militar na fronteira, situado no centro do território Sioux. Deparando-se com um bando de índios atacando uma diligência, John impede o assalto e chama a atenção de Jane Logan (Ann Drew), que está a caminho do rancho do irmão nas redondezas. Mais tarde, ele ganha a admiração de seus homens, domando um cavalo selvagem, que eles lhe entregaram como uma brincadeira de mau gosto; porém é repreendido pelo ciumento Capitão Ortwell (J.P.McGowan), quando se recusa a contratar os serviços de Lone Wolf (Chief Yowlachie), um índio traiçoeiro, que está espionando no forte e prepara uma cilada para os cavalarianos. Após alguns incidentes, John salva as tropas de uma emboscada, conduzindo-as a salvo até o forte, onde o ataque Sioux é rechaçado.

O filme enfatiza a dextreza de Maynard como cavaleiro, tem um ritmo rápido, e oferece ainda uma dose de romance e humor. Rogell captou toda a ação cruciante desses espetáculos com close-ups faciais de Maynard, para não deixar dúvida na mente do espectador sobre quem estava, precisamente, fazendo as cenas arriscadas como aquela do início, quando os índios atacam a diligência. O cocheiro e o guarda são mortos e o veículo corre desgovernado. Ken monta num cavalo, fica de pé em cima da sela e pula para um dos cavalos da diligência. Ele consegue pegar uma das rédeas e depois, pendurando-se entre outros dois cavalos da diligência, alcança as outras rédeas rente às patas dos animais e, finalmente, senta no banco do cocheiro.

Terminado o compromisso na First National, Harry Joe Brown procurou Carl Laemmle na Universal e negociou um contrato, para filmar uma série de westerns com Maynard. Os primeiros quatro filmes na Universal, Os Cargueiros do Deserto / Wagon Master / 1929, O Prêmio do Amor / Senor Americano / 1929, Parada do Oeste / Parade of the West / 1930 e Sela da Sorte / Lucky Larkin / 1930, segundo Jon Tuska (The Filming of the West, 1976), eram semelhantes aos da First National, provavelmente graças à colaboração do roteirista Marion Jackson, que veio para a Universal com a equipe de Maynard.

Quando deixou o estúdio de Laeemle, em 1930, Ken assinou um contrato para fazer um número indeterminado de filmes na Tiffany Productions, cujo gerente de produção era Samuel Bischoff. Em 1932, Bischoff organizou, com Burt Kelly e William Saal, a KBS Productions, que distribuia seus filmes pela World Wide. Nos westerns da Tiffany, produzidos com orçamentos mínimos de doze a quinze mil dólares, a ação foi reduzida consideravelmente em comparação como os filmes da First National e Universal. Porém a independência de Bischoff das limitações monetárias da Tiffany, fêz com que sua série subseqüente na KBS tivesse uma melhoria substancial.

O último filme da Tiffany, Corisco do Inferno / Hell Fire Austin / 1932, financiado separadamente por um grupo de investidores independentes chamado Quadrangle Productions, segundo várias opiniões, foi o melhor de todos filmados por aquela empresa.

Os dois westerns expressivos da KBS foram Rancho Dinamite / Dynamite Ranch / 1932 e Tarzan, o Cavalo Selvagem / Come on, Tarzan / 1932, os quais eu pude ver recentemente. O primeiro, graças à colaboração do excelente fotógrafo Ted McCord e ao perfeito entrosamento entre Ken e Ruth Hall, formando o par romântico e o segundo, também fotografado por McCord, pelas cenas excepcionais com um bando de cavalos selvagens, liderados por Tarzan, e uma das acrobacias mais eletrizantes de todos os tempos num filme do gênero: Ken desce por um morro e salta sobre os cavalos de dois bandidos que correm vertiginosamente. Ele põe um pé em cada cavalo e começa a dar socos nos bandidos, até derrubá-los, um após o outro.

Os 19 filmes da Tiffany e KBS mantiveram Maynard na tela e sua popularidade estava em ascenção. Os destaques eram claramente para Ken e Tarzan; mas havia aspectos negativos: a falta de um acompanhamento musical que daria mais vivacidade às cenas de ação e a coreografia das brigas não tinham o mesmo acabamento e precisão, que seriam a marca registrada dos futuros seriados da Republic. Ken não sabia representar, porém sua assombrosa habilidade como cavaleiro (cavalgar duas montarias ao mesmo tempo com um pé em cada sela, ficar preso à sela do cavalo deixando cair todo o corpo e segurando o chapéu com uma das mãos, etc) e sua boa aparência compensavam sua deficiência interpretativa.

De volta à Universal, Ken ganhou sua própria unidade de produção (Ken Maynard Productions) e o controle criativo de seus filmes. Nessa segunda fase no estúdio de Carl Laemmle, Ken foi dublado por Cliff Lyons e por seu irmão Kermit e, em O Segredo das Selvas / Strawberry Roan / 1933, ele cantou duas vezes e a balada dominou completamente o filme, que pode ser considerado a primeira realização madura de um western musical. Ken não foi formalmente treinado para ler música mas tocava violino, guitarra, banjo e piano de ouvido.

Foram feitos ao todo oito filmes e Luta de Astúcia / Trail Drive /1933 e Rodas do Destino / Wheels of Destiny / 1934 costumam ser apontados, juntamente com O Segredo das Selvas, como os favoritos do público. Carl Laemmle gostava dos filmes de Ken e não se importava muito com o seu temperamento irascível. Os westerns estavam sendo bem recebidos pelos exibidores, mas custavam caro. Carl pai sugeriu a seu filho, também chamado Carl, que ficasse de olho nos gastos. Quando Carl filho reclamava dos altos custos, Ken ficava furioso e dizia que sabia muito bem o que estava fazendo. As discussões entre Junior e Maynard foram ficando cada vêz mais acaloradas, e o ator acabou saindo da firma dos Laemmle.

Ken foi parar na Mascot Pictures de Nat Levine, onde fez o seriado A Montanha Misteriosa / Mystery Mountain / 1934 e Santa Fé ou Conquistando Corações / In Old Santa Fe / 1934, que tinha um interlúdio musical com Gene Autry. O esperto produtor usou o prestígio de Ken, para lançar Autry, o seu novo cowboy-cantor. Gene já havia aparecido no seriado, dirigido por Otto Brower e B. Reeves Eason, no qual Ken enfrentava “the Rattler”, um mascarado sinistro, apelidado de “A Ameaça da Montanha”, que estava por trás de múltiplos assassinatos.

Nos filmes que fez subseqüentemente para a Columbia, Grand National, Colony e Monogram, Ken não foi mais o mesmo mocinho; muitas das cenas movimentadas desses westerns eram tomadas de arquivo de antigas produções. Na Monogram, Ken formou um trio com Hoot Gibson e Bob Baker (depois substituído por Bob Steele) na série Defensores Indomáveis / Trail Blazers. Ken sentiu que tinha de perder peso, mas quando soube que Hoot não tinha a menor intenção de fazer dieta – “Não pelo dinheiro que ganho!”, disse Hoot – Ken também não fez. A gordura dos dois é bem visível nos filmes da série.

Quando trabalhava para a Colony, em 1939, Ken se divorciou de Mary e se casou com Bertha Rowland Denham Posteriormente, ele integrou outro trio, desta vez com Eddie Dean e Max Terhune num único filme para a Mattox, Balas e Violões / Harmony Trail, afastando-se das telas, para se dedicar exclusivamente ao seu Diamond K. Ranch Wild West Show. Uma derradeira aparição diante das câmeras ocorreria em Bigfoot / 1973, como coadjuvante, ao lado de outro veterano, John Carradine.

Depois que Bertha faleceu, Ken ficou sozinho no trailer onde moravam, estacionado em San Fernando Valley. Em 23 de março de 1973, Ken Maynard deixou este mundo aos 77 anos, cansado da vida e da solidão. Ninguém diria que fora um dos maiores cowboys do Cinema, para sempre gravado na memória dos fãs.

FILMOGRAFIA

Em 1988, Gil de Azevedo Araújo, Danilo Dieguez e eu elaboramos uma filmografia de Ken Maynard, publicada na revista Cinemin nº42 (Editora EBAL), que agora revisei, acrescentando mais títulos em português. Vi apenas onze filmes de Maynard (A Horda Vermelha,  O Prêmio do Amor,Rancho Dinamite e Tarzan, o Cavalo Selvagem: Luta de Vingança, o seriado O Mistério da Montanha, Santa Fe, Cavaleiro Furacão, Ódio e Vingança, O Relâmpago das Campinas e Rumo ao Oeste). Dos que eu vi, os meus preferidos são: Horda Vermelha e Tarzan, O Cavalo Selvagem. 1924 – JANICE MEREDITH / Janice Meredith; Filmes mudos para a Davis e First National: O PRÊMIO TENTADOR / $50.000 Reward. 1925 – CORAGEM DE LUTADOR / Fighting Courage; O DEMÔNIO DO GALOPE / The Demon Rider. 1926 – ESTRELA DO NORTE / North Star; SONHANDO ACORDADO / The Grey Vulture; O RANCHO DOS FANTASMAS / The Haunted Range; O CAVALHEIRO INCÓGNITO / The Unknown Cavalier; O DESTEMIDO / Senor Daredevil. 1927 – SELVAS E CONQUISTAS / The Overland Stage; TERRORES DA FRONTEIRA / Somewhere in Sonora; TERRA DE NINGUÉM / The Land Beyond the Law; A SELA DO DIABO / The Devils Saddle; A HORDA VERMELHA / The Red Raiders; O EVANGELHO DE FOGO / Gun Gospel. 1928 -TRATO É TRATO / The Wagon Show; O VALE DA AVENTURA / The Canyon of Adventure; O CAVALEIRO DA ESPERANÇA / The Upland Rider; TIRANDO A LIMPO / Code of The Scarlet; A GLORIOSA JORNADA /  The Glorious Trail;  A CIDADE FANTASMA / The Phantom City. 1929 – A TODA A BRIDA  ou  À RÉDEA SOLTA / Cheyenne; LEGIÃO SUSPEITA / The Lawless Legion; MALA DA CALIFÓRNIA / The California Mail; CAVALEIRO REAL / The Royal Rider; Filmes mudos, parcialmente falados, primeiros falados na Universal: OS CARGUEIROS DO DESERTO / The Wagon Master; O PRÊMIO DO AMOR / Senor Americano. 1930 – PARADA DO OESTE / Parade of the West; SELA DA SORTE / Lucky Larkin; A LEGIÃO DOS HERÓIS / The Fighting Legion; MISSÃO DE VINGANÇA / Mountain Justice; AUDAZ CAVALEIRO / Song of the Caballero; AMIZADE REDENTORA / Sons of the Saddle; Filmes na Tiffany: LUTA DE VINGANÇA / Fightin’ Thru. 1931 – SOMBRAS DA MORTE / Two-Gun Man; ÓDIO E VINGANÇA / Alias the Bad Man; O TERROR DO ARIZONA / Arizona Terror; A LEI DAS MONTANHAS / Range Law; HOMENS MARCADOS / Branded Men; O CRIME DO RENEGADO / Pocatello Kid. 1932 – EMBOSCADA FATAL / Sunset Trail; UM TEXANO VALENTE / Texas Gunfighter; HERÓI DA FRONTEIRA / Whistling Dan; CORISCO DO INFERNO / Hell-Fire Austin; Filmes na KBS / World Wide: RANCHO DINAMITE / Dynamite Ranch; TARZAN, O CAVALO SELVAGEM / Come on, Tarzan; ENTRE LUTADORES / Between Fighting Men; O BANDIDO DO CAVALO BRANCO / Fargo Express; O FANTASMA DO DESFILADEIRO / Tombstone Canyon. 1933 – O DEFENSOR DA LEI / Drum Taps; O TERROR DO OESTE / Phantom Thunderbolt; VINGADOR SILENCIOSO / The Lone Avenger; Filmes na Universal, 2a fase:VENCEDOR MODESTO / King of the Arena; O ENVERGONHADO / The Fiddling Buckaroo; LUTA DE ASTÚCIA / Trail Drive; O SEGREDO DAS SELVAS / Strawberry Roan; O PASSO FATAL / Gun Justice. 1934 – RODAS DO DESTINO / Wheels of Destiny; DÍVIDA DE HONRA / Honor of the Range; DESAFIANDO O PERIGO / Smoking Guns; Filmes na Mascot: SANTA FE / In Old Santa Fe; O MISTÉRIO DA MONTANHA / Mystery Mountain (Seriado). Filmes na Columbia: 1935 – EM CAMINHO DO OESTE / Western Frontier; CORAGEM DO SERTÃO / Western Courage; APUROS DE HERDEIRO / Heir to Trouble; SALTEADORES DO DESERTO / Lawless Riders. 1936 – LADRÃO DE GADO / The Cattle Thief; HERÓIS DA SERRA / Heroes of the Range; ÁGUAS VINGADORAS / Avenging Waters; O XERIFE FUGITIVO / Fugitive Sheriff. 1937 – Filmes na Grand National: PROCURANDO CONFUSÃO / Trailing Trouble; DESTINO TRAÇADO / Boots of Destiny. 1938 – CAVALEIRO FURACÃO / Whirlwind Horseman; XERIFE MATA SEIS / Six Shooting Sheriff. 1939 – Flaming Lead. 1940 – O RELÂMPAGO DAS CAMPINAS / Death Rides the Range; FAZENDA ASSOMBRADA / Phantom Ranger; O RELÂMPAGO DE BOTAS / Lightning Strikes West. 1943 – Série Trail Blazers: O MISTÉRIO DO DESFILADEIRO / Wild Horse Stampede; NAS MALHAS DA LEI / The Law Rides Again; PISTOLAS FLAMEJANTES / Blazing Guns; VALE DA MORTE / Death Valley Rangers; RUMO AO OESTE / Westward Bound; FALSÁRIOS DO OESTE / Arizona Whirlwind. 1944 – Filme na Mattox: Balas e Violões / Harmony Trail. 1970 – Aparição como convidado:  Bigfoot.

ERICH VON STROHEIM – GÊNIO MALDITO DO CINEMA

Erich Von Stroheim trouxe para o Cinema Mudo maturidade, sofisticação e um estilo original e agressivo, no qual se juntam, contraditoriamente, realismo e romantismo, crítica social e esteticismo, satanismo e espiritualidade, beleza e abjeção.

Seus filmes são um requisitório contra a sociedade, quase sempre a austro-húngara nos últimos estágios de decadência, com a qual parece manter uma relação de amor e ódio e que descreve com uma minúcia balzaquiana, procurando mostrar a verdadeira vida com toda a sua sordidez, violência e sensualidade.

Foi ainda precursor da técnica moderna – por ter dado menos importância à montagem, preocupando-se mais com a acumulação de detalhes significativos dentro de cada cena – e sua influência se fez notar na obra de eminentes diretores como Josef Von Sternberg, Ernst Lubitsch, G.W.Pabst, Max Ophuls, Orson Welles, Billy Wilder, John Huston, William Wyler,  Luchino Visconti, etc.

Entretanto, esse grande artista não soube condensar o que tinha para dizer, indispondo-se com os produtores, os quais, espantados com seu perfeccionismo e concepções inusitadas, transformaram-no no gênio maldito do Cinema.

Erich Oswald Stroheim nasceu em Viena, a 22 de setembro de 1885, não como descendente de uma baronesa alemã e de um conde austríaco, como se pensava, mas filho de um fabricante e vendedor de chapéus, Benno Stroheim e de Johana Bondy, ambos membros da comunidade israelita. Porém Stroheim adotou o catolicismo (pelo menos nos seus elementos ritualísticos), com a paixão fervorosa de um autêntico convertido.

Em 1909, aos vinte quatro anos de idade, Stroheim emigrou para a América e, nos primeiros tempos em Hollywood, trabalhou como figurante, assistente de direção, consultor militar e cenógrafo, principalmente sob as ordens de David Wark Griffith e John Emerson.

Quando os Estados Unidos entraram na Primeira Guerra Mundial, Stroheim interpretou papéis de oficiais alemães desalmados, sendo identificado pela frase de propaganda: “o homem que você gosta de odiar”.

A cena de estupro em Coração da Humanidade / The Heart of Humanity / 1918       ficou famosa: Stroheim consegue finalmente encurralar Dorothy Phillips, provocante no seu uniforme da Cruz Vermelha. No mesmo quarto em que ela se encontra, está um bebê órfão, de quem Dorothy está cuidando. Enquanto do lado de fora do prédio sobe a fumaça da cidade em chamas, Stroheim começa a rasgar o uniforme da enfermeira com os dentes. Os gritos de Dorothy se misturam com os da criança, até que Stroheim perde a paciência. Ele apanha o bebê no berço e joga-o pela janela do segundo andar. “Eu me senti péssimol por causa desta cena”, relembrou Stroheim numa entrevista em 1942. “Aquela criança berrava muito e após o quarto take ficou histérica. Eu era o vilão no filme, mas o verdadeiro vilão foi a mãe do bebê, que deixou seu filho sofrer tudo aquilo por uma nota de cinco dólares”.

Após o armistício, Stroheim estreou na direção com o filme Maridos Cegos ou Castigo do Sedutor/ Blind Husbands / 1919, produzido pela Universal. A ação tem lugar em Cortina d’Ampezzo, nos Alpes. Carente da afeição de seu marido, o famoso cirurgião americano Dr. Armstrong, (Sam de Grasse), Margaret (Francelia Billington) se deixa seduzir pelo oficial da cavalaria austríaco, Erich von Steuben (Erich Von Stroheim). Este entra no quarto de Margaret à noite, mas encontra o guia Silent Sepp (Gibson Gowland), amigo do Dr. Armstrong, que mudara de quarto, para proteger Margaret das investidas do militar. No dia seguinte, o doutor e Von Steuben escalam um pico, conhecido por sua inacessibilidade. No topo da montanha, ao ajudar Von Steuben, segurando-o pelo casaco, Armstrong descobre uma carta de Margaret no bolso dele; porém o vento a arranca de suas mãos, antes que ele pudesse ler o cvonteúdo. O ciúme o exaspera. Ele pensa em matar Von Steuben, mas apenas o agride, corta a corda que prendia um ao outro, e desce a montanha. Armstrong reencontra a carta e lê: “Amo meu marido e meu marido me ama”. Neste momento, chegam ao local Margaret e Silent Sepp e, quando todos voltam a atenção para Von Steuben, ele acabara de despencar no precipício.

Neste filme de principiante, ainda imperfeito e um pouco esquemático, percebe-se o gosto do cineasta pelo melodrama e pela psicologia, um enfoque adulto das relações sociais e sexuais, e o esboço do tipo do conquistador cínico e lascivo, que será aperfeiçoado nas suas obras seguintes.

A linguagem cinematográfica, todavia, não chega ao nível das idéias do diretor. O domínio da câmera, da montagem e do ritmo é pouco imaginativo. Por exemplo, na montagem paralela no final do filme, quando a esposa e o guia ficam cada vez mais apreensivos na cabana, enquanto os dois homens brigam na montanha, não há suspense. O talento de Stroheim concentra-se na brilhante composição dos personagens, observação de detalhes e criação de ambiente, aspectos para os quais terá sempre um cuidado especial.

Em 1919, Stroheim fez The Devil’s Pass Key, exibido no Brasil com os títulos de Machiavelismo e A Chave do Demônio que, tal como seu filme anterior, é um enfoque adulto e malicioso da relação social, sentimental e sexual de um matrimônio, tendo como heroína novamente uma esposa insatisfeita, Grace Goodwright (Una Trevelyn) lisonjeada pelas atenções de um oficial do Exército, Capitão Rex Strong (Clyde Fillmore).

Segundo consta, não existe cópia disponível em nenhuma cinemateca do mundo, impossibilitando a reavaliação da obra. Em julho de 1940, uma inspeção no depósito de cópias da Universal demonstrou que, uma parte do quinto rolo estava se decompondo; pouco tempo depois, em 8 de maio de 1941, o estúdio destruiu todo o negativo.

Uma das poucas referências que temos a respeito dessa realização, diz respeito a uma série de experimentações em estilização fotográfica e a manipulação da cor para efeitos dramáticos.

A terceira realização na Universal, Esposas Ingênuas / Foolish Wives, de 1922, destacou mais a singular personalidade do diretor. Em Monte Carlo, um aventureiro, assumindo o nome de Conde Wladislaus Sergius Karamzin (Erich von Stroheim), vive uma existência de luxo na companhia de duas “primas”, Olga (Maude George) e Vera (Mae Bush) Petschnikoff, que se fazem passar por princesas, mas são de fato ex-condenadas, recentemente saídas da prisão. Com a ajuda de suas cúmplices, Karamzin passa adiante dinheiro falsificado e, para aumentar seus rendimentos, seduz mulheres ricas e faz chantagem com elas. Ele escolhe Helen (Miss Dupont), a esposa do embaixador americano, Andrew J. Hughes (Rudolph Christians, substituído após sua morte repentina por Robert Edeson), como sua próxima vítima. Maruschka (Dale Fuller), a criada que serve aos impostores, amante de Karamzin, pressiona-o para que se case com ela e, consternada com os fingidos problemas do “Conde”, entrega-lhe todas as suas economias. Mais tarde, enciumada, Maruschka põe fogo no aposento onde, simulando a necessidade de saldar dívidas de jogo, Karamzin induzira a mulher do diplomata a encontrar-se com ele. Quando chegam os bombeiros, Karamzin é o primeiro a saltar do prédio em chamas. A criada suicida-se, atirando-se ao mar. Olga e Vera são presas e desmascaradas. Depois de ser esmurrado pelo marido furioso, Karamzin procura refúgio na casa do velho falsário Caesare Ventucci (Cesare Gravina), seu cúmplice, onde violenta a filha deste, Marietta (Malvine Polo), uma adolescente semi-idiota. O pai de Marietta o surpreende, mata-o, e joga o cadáver num bueiro.

Stroheim serve-se desse melodrama folhetinesco, para pintar um quadro de costumes cheio de maldade e mentira, um universo de horror e de falsidades – as falsas aparências e os falsos sentimentos. Ele nos faz acreditar nessas aventuras rocambolescas pelo preciso estudo dos personagens, pela veracidade dos cenários e pela riqueza de pormenores irônicos, sórdidos e sensuais.

Ninguém esquece Karamzin beijando a criada e enxugando os lábios com desgosto; fingindo o pranto com a água usada para fazer as unhas; dando as costas para a esposa do embaixador que se despe, mas espiando as escondidas por um pequeno espelho; o encontro de Mrs. Hughes com o militar mutilado, que ela julga rude, por não ter apanhado objetos que ela deixara cair no chão; o bode malcheiroso e o monge que surge abruptamente, impedindo os desígnios lúbricos de Karamzin; a libertação dos pássaros antes do ato incendiário e a silhueta da suicida, tendo ao fundo o mar; a retirada das cabeleiras postiças das duas “princesas”; a iluminação contrastada nas cenas de sedução, como o passeio no bote e a visita de Karamzin ao quarto da jovem abobalhada.

Nesses instantes, Stroheim antecipa todas as suas obsessões – sadismo, erotismo, corrupção, enfermidade, paixão e morte – que serão continuadamente elaboradas nos seus filmes, cada vez com maior truculência. A partir do tema básico e trivial da desilusão de uma esposa tola que finalmente encontra no marido a nobreza que procurava num impostor, Stroheim faz um julgamento moral e mordaz de uma sociedade de cuja degeneração não duvida, mas que, ao mesmo tempo, o fascina.

A produção foi um pesadelo sem precedentes em Hollywood e gerou a reputação de Stroheim como um “maníaco perfeccionista”. Ele mandou reconstruir com o máximo de exatidão as fachadas principais do Cassino de Monte Carlo, do Hotel de France e do Café de Paris na área externa do estúdio da Universal. Porém os lados opostos desses edifícios – supostamente contemplando o Mediterrâneo – tiveram que ser construídos em Pont Lobos, perto de Del Monte, na península de Monterey, a muitos quilômetros de distância da Universal City. Na locação de Pont Lobos, uma tempestade destruiu a maior parte do que havia sido construído, obrigando os carpinteiros a começar tudo de novo. Stroheim queria mostrar cenários, decoração, vestuário, objetos e o comportamento dos personagens da forma mais correta possível, queria que tudo parecesse autêntico.

Esta paixão pelo detalhe naturalmente elevou as despesas a tal ponto, que Irving Thalberg, o novo chefe de produção da Universal, depois de muitas discussões com o diretor, foi obrigado a intervir, mandando recolher as câmeras, para que a filmagem fosse encerrada.

Após onze meses de trabalho, Stroheim entregou ao estúdio um filme de seis horas e meia, impossível de ser distribuído. Era preciso fazer com que a obra tivesse uma duração “razoável”. O filme sofreu vários cortes (feitos por Arthur Ripley) e foi exibido, na estréia em 1922, com três horas e meia de duração. Porém os críticos, as revistas de fãs e os trade papers acharam que o espetáculo ainda estava muito longo.

Quando o filme entrou em circulação normal, novos cortes e novas montagens foram feitos sucessivamente, e o filme ficou com cerca de uma hora e quarenta e cinco minutos. Em 1972, sob os auspícios do American Film Institute, Arthur Lennig fez uma restauração, para duas horas e vinte e um minutos, que podemos ver hoje no DVD lançado pela Image Entertainment em 2000.

Apesar dessa mutilação, Esposas Ingênuas causou um impacto sensacional na época do seu lançamento com seu melodrama de adultério, falsificação de moedas, corrupção na aristocracia, simulação, morbidez, violência e cinismo.

Ele continua sendo um filme típico do gênio de Stroheim, “uma espécie de visão baudelairiana de um mundo onde estão lado a lado falsos aristocratas, burgueses verdadeiros e pessoas do povo, vítimas dos mesmos demônios” (Jacques Siclier).

Por ordem de Irving Thalberg, Stroheim foi substituído por Rupert Julian na direção de Redemoinho da Vida / Merry-Go-Round / 1922 no meio da filmagem.  Alguns dos motivos de sua dispensa, constantes da carta de demissão, foram: insubordinação, deslealdade à companhia que o contratara, idéias extravagantes, atrasos desnecessários, flagrante desprezo pelos princípios da censura; porém o diretor deixou marcas do seu estilo na cenografia e na construção de algumas cenas e introduziu no enredo o ambiente vienense e temas que seriam desenvolvidos em A Viúva Alegre / The Merry Widow / 1925, A Marcha Nupcial / The Wedding March / 1928 e Minha Rainha / Queen Kelly / 1929.

Apenas para se ter uma idéia do argumento, escrito por Stroheim, o impetuoso Conde Franz Maximilian von Hohenegg (Norman Kerry), noivo da Condessa Gisella von Steinbrueck (Dorothy Wallace), enamora-se de Agnes Urban (Mary Philbin), jovem empregada num parque de diversões, que é também cobiçada pelo patrão, Schani Huber (George Siegmann) e por um colega de trabalho corcunda, Bartholomew Gruber (George Hackathorne). Após alguns incidentes – que lembram os de A Marcha Nupcial, tais como o matrimônio sem amor entre Franz e Gisella e a tentativa de estupro que Agnes sofre por parte do brutal concessionário do parque – e de uma guerra durante a qual, pensando que Franz morreu, Agnes promete casar-se com o colega corcunda, tudo acaba bem. Giselle morre e Bartholomew abre mão de Agnes em favor do conde.

Em Ouro e Maldição / Greed / 1924, adaptação bastante fiel do romance zolaesco de Frank Norris, produzida pela Goldwyn Company, Stroheim afasta-se dos ambientes grã-finos europeus e escrutina com impiedade o meio de imigrantes da classe média baixa dos Estados Unidos, focalizando particularmente o drama da degradação de três seres humanos, impulsionados pela frustração, pela miséria e pela voracidade.

McTeague (Gibson Gowland) trabalha de início numa mina de ouro na Califórnia e depois como assistente de um dentista ambulante. Após aprender o ofício, abre um consultório em San Francisco, sem a necessária licença. Ali, faz amizade com Marcus (Jean Hersholt) e se apaixona pela prima e “queridinha” deste, Trina (ZaSu Pitts). Ele confessa sua paixão a Marcus e este, cavalheirescamente, desiste de cortejar Trina. Esta ganha cinco mil dólares na loteria e se casa com McTeague. Frustrada pela incomprensão espiritual e física do marido, Trina transfere sua potencialidade sentimental e sexual para o dinheiro, tornando-se uma avarenta. Arrependido de ter renunciado a Trina e com inveja de McTeague, Marcus exige uma parte do dinheiro. Os dois se desentendem e Marcus denuncia McTeague às autoridades por exercício ilegal da profissão. Desprovido do meio de subsistência, McTeague entrega-se à bebida e Trina, evitando tocar no seu tesouro, vai trabalhar em serviços de limpeza. Finalmente, McTeague mata Trina e foge com o dinheiro. Marcus persegue-o até o Vale da Morte e, no confronto, MacTeague tira a vida do ex-amigo, sem perceber que este o havia algemado. Forçado a arrastar o corpo inerte de Marcus e extenuado pelo sol inclemente do deserto, McTeague aguarda o fim trágico ao lado da mula morta, do cantil vazio e das moedas de ouro espalhadas na areia.

O contrato de Stroheim com a Goldwyn não lhe dava carta branca. Era mais restritivo do que o que assinara com a Universal, porque foram estabelecidos tetos orçamentários e limitações rígidas com relação ao tempo de duração do filme e da filmagem. Stroheim não cumpriu nenhuma das clásusulas previstas e, em 18 de março de 1923, a Goldwyn Company começou a tomar as providências legais, para removê-lo da produção. Entretanto, em 10 de abril, o estúdio se fundiu com a Marcus Loew’s Metro Pictures Corporation e Irving Thalberg tornou-se o chefe da produção. Ficar novamente sob a vigilância de Thalberg foi um choque para Stroheim, mas pelo menos Ouro e Maldição já estava pronto e montado numa cópia de trabalho. O próprio diretor reduzira a metragem originária de 45 rolos (nove horas e meia) para 24 rolos. Feito isso, Stroheim enviou sua cópia para o amigo Rex Ingram, e este entregou-a para seu montador, Grant Whytock, que havia trabalhado com Stroheim em The Devil’s Pass Key. Whytock estudou o filme cuidadosamente e propôs cortá-lo em duas seções: um filme de oito rolos terminando com o casamento de Trina e McTeague e um filme de sete rolos prosseguindo com a história até o final no Vale da Morte. Ele eliminou duas subtramas completas, uma concernindo um negociante de ferro-velho e sua mulher meio louca e outra relacionada com o pai alcoólatra de McTeague. Dos 24 rolos da versão de Stroheim sobraram apenas 18 rolos.

Quando o estúdio finalmente despediu Stroheim, Thalberg entregou o filme a um redator de títulos, Joseph Farnham e este, eliminando longos trechos de ação e preenchendo as lacunas com subtítulos de continuidade, chegou a uma cópia de dez rolos (aproximadamente duas horas). Esta versão foi vista durante muitos anos nas cinematecas até que, em 1999, a Turner Classic Movies (TCM), usando as fotografias fixas tiradas durante a produção do filme, para documentar cada cena, reconstruiu uma versão de quatro horas, que esclareceu vividamente as verdadeiras dimensões do filme e recriou o seu esquema de cor original com o uso do Handschiegl Process de colorização seletiva de objetos dentro do quadro. Stroheim tinha uma predileção especial pela cor, tendo usado a colorização à mão em Esposa Ingênuas e o Technicolor em duas cores em cenas de A Víuva Alegre e A Marcha Nupcial.

Sem deixar de seguir o modelo naturalista de Norris, Stroheim insuflou ao tema a sua poesia visionária, que transparece em momentos soberbos, nos quais se nota o emprego do refrão, da elipse e do símbolo: McTeague acariciando o passarinho no começo e no fim do filme;  o primeiro beijo de McTeague em Trina, anestesiada na cadeira do dentista; Trina e McTeague sentados no cano de esgoto, ele tocando “Hearts and Flowers” na harmônica, a chuva, o beijo e o trem que avança velozmente; um gato e dois passarinhos como representação dos três personagens centrais; o enorme dente de ouro que serve de indicação do consultório; o cortejo fúnebre num contraponto alusivo à festa nupcial; Trina alimentando com carne estragada o marido que se tornara mendigo e se deitando na cama com as moedas de ouro espalhadas pelo corpo; o assassinato invisível de Trina na sala ironicamente ornamentada de enfeites de Natal; o horripilante desfecho no Vale da Morte, suscitando a impressão de desespero e futilidade.

Formando com Esposas Ingênuas e A Marcha Nupcial o trio indiscutível de obras-primas do cineasta, Ouro e Maldição chegou a ser apontado entre os dez melhores filmes de todos os tempos e até hoje, apesar dos cortes, continua impressionante.

Apesar de sua qualidade artística, o filme não obteve êxito comercial e Stroheim foi obrigado a fazer A Viúva Alegre / The Merry Widow / 1925 (aceitando contra a sua intenção, a presença de dois astros, John Gilbert e Mae Murray), para a Metro-Goldwyn- Mayer. Ele, porém, transformou a leve e charmosa opereta de Franz Lehar numa comédia-dramática sarcástica, aproveitando a história de amor, para satirizar mais uma vez uma aristocracia em decomposição, e inventando o personagem do Barão Sadoja, que enriqueceu a galeria de vilões grotescos e depravados de sua filmografia.

Em Castellano, capital do reino fictício de Monteblanco, Príncipe Danilo (John Gilbert), o segundo na ordem sucessória do trono depois do primo, Príncipe Mirko (Roy D’Arcy), apaixona-se por Sally O’Hara (Mae Murray), dançarina americana apresentando-se na cidade. Quando Danilo declara a intenção de desposá-la, sua mãe convence-o da inconveniência do matrimônio, e o Rei manda dizer a Sally, que deve deixar o país. Abandonada, Sally casa-se com o Barão Sadoja (Tully Marshall), velho aleijado e fetichista, cujos milhões sustentam o reino. O barão morre na noite de núpcias e Sally vai gastar sua fortuna em Paris. Ali chegam também Danilo – inconformado com a perda da amada – e Mirko – com a incumbência de propor novas bodas à viúva, a fim de recuperar a fortuna de Sadoja para Monteblanco -, travando-se o conflito entre os dois.

Stroheim elaborou quadros provocantes e perversos – o jantar que Danilo oferece a Sally num cômodo, onde se vêem os dois sentados à mesa e, ao fundo, deitadas no leito, duas jovens prostitutas seminuas e de olhos vendados, tocando instrumentos musicais; a orgia dos oficiais com a presença de prostitutas e rapazes também meio desnudos e mascarados com os rostos pintados de branco e perucas louras; a fixação de Sadoja pelos pés e sapatos de mulher e sua morte na alcova; as motivações de cada admirador ao ver Sally dançando, através dos close-ups alternativos dos seus pés (o amor patológico de Sadoja), de seu busto (o amor carnal de Mirko) e do seu rosto (o amor puro de Danilo) – e, mesmo sem ver tudo o que foi imaginado pelo diretor por causa da censura, o público deixou-se arrebatar pelo espetáculo, consagrando-o nas bilheterias.

A Marcha Nupcial / The Wedding March / 1928, produzido por P.A. Powers para a Paramount, combina crueldade e pureza num esplendor barroco, para contar as vicissitudes de um verdadeiro amor, contrariado pelo interesse e pelas barreiras sociais. Na trama, os Wildeliebe-Rauffenburg (Maude George, George Fawcett), membros da família real da Áustria, exigem que o filho, Príncipe Nicki (Erich von Stroheim) faça um “bom” casamento e a escolhida é Cecelia (ZaSu Pitts), jovem feia e coxa, filha de um riquíssimo fabricante de emplastros. Entretanto, Nicki apaixona-se por Mitzi (Fay Wray), noiva de Schani (Matthew Betz), um açougueiro. O matrimônio é acertado entre o pai de Nicki e o de Cecelia durante uma orgia. Ao ler a notícia das bodas, Mitzi cai em prantos e, quando o açougueiro vem consolá-la, ela o repele, reafirmando o amor por Nicki. Schani tenta violentá-la, mas o pai dele chega a tempo de impedí-lo. Transtornado, Schani ameaça matar Nicki. Para evitar o crime, Mitzi promete casar-se com ele. Os noivos passam de carruagem diante dos dois e Schani levanta Mitzi, chorando, para que ela possa acompanhar o desfile. “Quem era aquela doce jovem em prantos?”, pergunta Cecelia. “Nunca a vi em minha vida”, responde Nicki.

A segunda parte do filme, intitulada The Honeymoon, começa com a viagem de lua-de-mel para a propriedade real no alto de uma montanha onde, após alguns incidentes, os quatro personagens centrais se encontram perto de um chalé de caça. Mitzi tenta desesperadamente avisar Nicki de que Schani pretende matá-lo e Cecelia coloca-se na frente da bala que Schani endereçara para seu marido. Schani é levado pelos caçadores e Cecelia fica mortalmente ferida. No funeral de Cecelia, a mãe de Nicki sussurra no ouvido do filho, que o casamento fôra um sucesso financeiro. Nicki é enviado para uma missão na fronteira da Sérvia, onde bandos de renegados aterrorizam a zona rural. Mitzi entra para um convento, o qual é atacado por um dos bandos de renegados liderados por um corcunda e seu lugar-tenente, Schani. Os dois disputam a posse de Mitzi, mas as tropas de Nicki chegam a tempo de salvá-la. Numa luta terrível, Nicki vence Schani, e depois se casa com Mitzi no altar do convento.

Stroheim evoca a Viena de sua juventude, com seu estilo de vida resplandecente, a aristocracia, os novos ricos e o recém-formado proletariado, que despreza a elite de dragonas e capacetes de aço. Possuído por um rancor dostoievskiano e, concomitantemente, por uma ternura nostálgica, o diretor perscruta as instituições moralmente anêmicas do declínio do império dos Habsburgos e expõe os vícios e as baixezas dos indivíduos (e tamém os seus sentimentos mais puros) com notável intuição psicológica e artística.

Como nos outros filmes do cineasta, o lírico, o sórdido e o alegórico – o flerte silencioso e a jovem do povo colocando um buquê de violetas dentro das botas do garboso oficial montado a cavalo; o idílio de Nicki e Mitzi no parque, coroado por flores de macieira e pelo luar; o aristocrata e o novo-rico rastejando no assoalho do prostíbulo, cada qual querendo explorar o outro, vendendo os filhos num infame contrato de casamento; a tentativa de estupro no matadouro entre as carcaças sangrentas dos animais; Cecelia recebendo a notícia de suas bodas vestida de branco e soltando um par de pombas; o fantasma do “Homem de Ferro” e as mãos do organista acompanhando a faustosa e lúgubre cerimônia de casamento que se transformam nas de um esqueleto – são conjugados admiravelmente pelo poder de expressão de um extraordinário cineasta.

Stroheim completou a primeira parte, que foi exibida mais ou menos como planejou; porém não terminou a segunda parte, lançada depois, somente na Europa, junto com um resumo da primeira, numa remontagem feita por Josef von Sternberg. The Honeymoon nunca foi exibido nos Estados Unidos, mas apenas na Europa e na América do Sul, inclusive no Brasil, onde recebeu o título de Lua-de-Mel. A única cópia sobrevivente, adquirida pela Museum of Modern Art Film Library em 1952, foi entregue à Cinemateca Francesa e tragicamente destruída num incêndio em 1959. Em 1953, A Marcha Nupcial, foi restaurado por Stroheim na mesma Cinemateca com a trilha de som ótico original. Esta versão fêz parte da Retrospectiva Stroheim, ocorrida no Cinema Marrocos durante o I Festival Internacional de Cinema do Brasil, realizado na cidade de São Paulo em 1954, com a presença do grande cineasta.

Minha Rainha / Queen Kelly / 1928, produzido pela Gloria Productions e distribuído pela United Artists, tem como personagens principais a Rainha Regina (Seena Owen), soberana neurótica de um reino imaginário, o primo e noivo Príncipe Wolfram (Walter Byron) e Patrícia Kelly (Gloria Swanson), pensionista de um orfanato religioso, por quem ele se apaixona. Forjando um incêndio, Wolfram rapta a jovem e a esconde no palácio da noiva. A rainha surpreende os dois em pleno idílio, expulsa Patrícia a golpes de chicote, e manda prender o príncipe. Depois de uma tentativa frustrada de suicídio, jogando-se num rio, a heroína é levada de volta ao orfanato. Um telegrama convoca-a para ir à África, onde a tia moribunda lhe pede que se case com Jan Bloehm Vryheid (Tully Marshall), velho aleijado e libidinoso, e lhe deixa um bordel com herança. Após a morte de sua protetora, Patrícia recusa viver com o marido, porém assume a administração do prostíbulo, sendo chamada de “Rainha Kelly” por sua postura nobre. Entrementes, Wolfram recupera a liberdade, parte em busca de Patrícia e, quando esta fica viúva, os dois se casam. Regina é assassinada, Wolfram sobe ao trono, e Patrícia se torna realmente uma rainha.

Stroheim retoma o tema do príncipe devasso, regenerado pela inocência de uma linda plebéia, para retratar ainda outra vez a aristocracia degenerada e exibe sua característica predileção pelos detalhes insólitos e eróticos – os calções de Patrícia deslizando até os pés no momento em que o belo príncipe passa com a tropa; a demoníaca Regina perambulando quase nua pelo palácio suntuosamente decorado com o gato branco nas mãos e depois chicoteando freneticamente a órfã aterrorizada; Patrícia vestida de noiva e o velho de muleta casando-se na presença do padre africano, uma prostituta negra e outra branca, coroinhas negros e a tia agonizante; a cama e o banheiro de Regina com esculturas de cupidos; Patrícia pedindo perdão a Deus na capela, com o rosto em close-up enquadrado por círios ardentes -, notando-se também uma maior movimentação da câmera e notáveis contrastes em preto-e-branco.

Insatisfeitos com os caprichos de Stroheim, o produtor Joseph P. Kennedy e a estrela Gloria Swanson, mandaram interromper a filmagem e depois ela decidiu lançar, somente no exterior, uma remontagem com desenlace diferente: Patrícia morria afogada e Wolfram suicidava-se ao lado do seu caixão. Em 1985, graças aos cuidados com que a atriz conservou o material original, Dennis Doros produziu para a Kino International – com a inserção de fotografias fixas – uma versão de 97 minutos (do que seria um espetáculo de cinco horas, se a obra não tivesse ficado inacabada), mas com o final escrito por Stroheim.

O colapso de Minha Rainha foi o último ato na destruição da carreira de Stroheim. Como e por quê o filme não foi completado? Numa entrevista para a BBC, Gloria Swanson disse que existiam várias histórias a respeito e que, naturalmente, a versão de Stroheim era diferente da sua.

Stroheim afirmou, numa carta escrita para Peter Noble, que Joseph P. Kennedy  mandou interromper a produção, quando percebeu que o cinema falado significaria “o toque fúnebre dos filmes mudos”. Já o argumento de Swanson era o de que havia uma censura na época e o filme certamente iria para a cesta de lixo, dando como exemplo o fato de que Stroheim originariamente especificara a locação na África, o “Poto-Poto Saloon”, como um salão de baile, mas durante a filmagem este se tornou um bordel.

Entretanto, como explica Richard Koszarski em Von – The Life and Films of Erich von Stroheim (Limelight, 2001),  livro de intensa pesquisa e deliciosa leitura,  de onde colhí muitas informações e que recomendo a todos, Kennedy investira numa companhia interessada em explorar os talkies (RCA), antes mesmo que Minha Rainha entrasse em produção e pensou em transformá-lo pelo menos num filme parcialmente falado no verão de, quando Stroheim ainda estava dirigindo. De modo que a tentativa de botar a culpa na chegada do som, parece improcedente. Quanto à alegação de Swanson, esta também não procede, porque Koszarski verificou que o roteiro original, conservado na George Eastman House, não deixava dúvida quanto à exata natureza do lugar. Kosarski conclui que somente restava como explicação o efeito cumulativo do delírio diretorial de Stroheim com os seus excessos financeiros.

Na magnífica série de Kevin Brownlow  sobre o Cinema Mudo, o fotógrafo Paul Ivano conta com muita graça como Stroheim mandou Tully Marshall babar de verdade na mão de Mrs. Swanson e esta, indignada, ligou para Kennedy, e ele imediatamente despediu o diretor.

O único filme falado de Stroheim, Walking Down Broadway  / 1937, produzido pela Fox, não chegou a ser exibido, porque os executivos do estúdio, apoiados na má reação do público numa pré-estréia, acharam que “o homem estava obsoleto, uma figura dos tempos do cinema mudo”. Lembrando-se do recente fracasso de The Struggle de Griffith, Philip K. Scheuer lamentou no New York Times: “Primeiro Griffith, agora Stroheim. Ambos artistas, assassinados pelo Tempo”. Refilmado por Edwin Burke e Alfred Werker, entrou em circulação em 1933, com o título de Alô Beleza / Hello Sister!

Desde então, Stroheim nunca mais conseguiu trabalhar como diretor. A necessidade ecnômica levou-ou a colaborar como argumentista e ator em vários filmes de nível artístico variável na França e nos Estados Unidos, sendo os dois melhores: A Grande Ilusão / La Grande Illusion / 1937 de Jean Renoir e Crepúsculo dos Deuses / Sunset Boulevard / 1950 de Billy Wilder.

Em 12 de maio de 1957, faleceu no castelo de Maurepas na França, aquele que, como disse André Bazin, fazia filmes ” verdadeiros como pedras e livres como os sonhos”.

MARIO SOLDATI

Escritor prolífico e poliédrico (poeta, romancista, contista, dramaturgo, ensaísta, roteirista, jornalista) e diretor eclético (adaptação de obras literárias, comédia, drama, policial, aventura, documentário), Mario Soldati demorou a ser reconhecido plenamente como cineasta. Primeiro, por ter trabalhado em tendência contrária no que diz respeito à linha dominante do cinema e à expectativa da crítica italiana nos anos 40; segundo, por ter se aproximado perigosamente dos espetáculos comerciais nos anos 50.

Posteriormente, a obra de Soldati foi examinada com uma reflexão serena e os historiadores chegaram à conclusão de que ele merece um lugar mais privilegiado no âmbito do cinema italiano.

Eu não conhecia alguns dos filmes mais significativos de Soldati, que foram as adaptações das obras literárias Piccolo mondo antico, Tragica notte, Malombra, Le miserie di signor Travet, Eugenia Grandet e La provinciale, mas numa viagem a Roma em outubro do ano passado, pude preencher esta lacuna na minha cultura cinematográfica, adquirindo cópias em dvd de todos eles. Neste artigo falarei apenas sobre esses filmes, que pude ver recentemente.

Mario Soldati (1906-1999) nasceu em Turim, Itália, de uma família de negociantes de sedas. Ele estudou em um colégio de jesuítas, diplomou-se em letras na cidade natal com uma tese sobre história da arte e aperfeiçoou seus conhecimentos no Instituto Superior di Storia dell’arte em Roma. Iniciou sua carreira de escritor com a peça Pilato (1924), porém só chamou a atenção dos críticos com a coletânea de contos Salmace (1929). No mesmo ano da publicação de seus contos, partiu para Nova York, onde ficou até 1931, primeiramente estudando e depois lecionando na Universidade de Columbia, experiência que contou num diário romanceado, America Primo Amore (1935), muito apreciado.

De volta à Itália, Soldati começou a se aproximar do Cinema, colaborando como roteirista em filmes de Alessandro Blasetti (vg. Contessa di Parma), Renato Castellani (vg. Duelo / Un colpo di pistola) e de outros diretores, mas principalmente nos de Mario Camerini (de Gli uomini, che mascalzoni a Il signor Max).

O seu primeiro filme como diretor, Due milioni per um sorriso / 1939, não era totalmente dele, pois dividia a direção com Carlo Borghesio. Nos dois filmes seguintes, Dora Nelson / 1939 e Tutti per la donna / 1940, o jovem turinense teve a liberdade de fazer o que queria e foi então que começou de fato a sua carreira cinematográfica.

No início dos anos 40, Soldati, integrou um grupo de diretores, entre os quais se incluíam Alberto Lattuada, Renato Castellani, Luigi Chiarini, Ferdinando Maria Poggioli e Luigi Zampa, que foram denominados pejorativamente pelos críticos de “calligrafici” (beletristas). Recusando os temas do cotidiano em prol de assuntos extraídos de textos literários, na sua maioria histórias que se desenrolam no século XIX, eles davam primazia aos valores formais e figurativos.

O movimento dos caligrafistas, nascido durante os anos do fascismo, exprimia uma secreta hostilidade à realidade social e política circundante, contra a qual eles tentaram uma espécie de revanche estética. Não podendo manifestar a menor crítica com relação ao presente, aqueles cineastas se refugiaram na evocação do passado.

Por sua perfeição técnica e artística, as realizações desses cineastas intelectuais podiam competir com o cinema estrangeiro contemporâneo e se inspiravam não somente em diretores franceses como Renoir, Carné, Feyder ou Duvivier, mas também no cinema alemão e americano.

No período 1941-1942, Soldati manifestou seu estilo caligráfico em três adaptações de obras literárias: Pequeno Mundo Antigo, Tragica Notte e Malombra.

Pequeno Mundo Antigo / Piccolo mondo antico / 1941 é uma transposição em imagens fiel do popular romance (1895) de Antonio Fogazzaro. Ambientado nos anos que precederam a segunda guerra de independência e tendo como pano de fundo o lago de Lugano, é a história do nobre Franco Maironi (Massimo Serato), católico e liberal e da burguesa Luisa Rigey (Alida Valli), que se casam contra  a vontade da avó do jovem, a condessa Orsola (Ada Dondini), autoritária e simpatizante dos austríacos. A marquesa persegue o par “rebelde” de todas as formas, deserdando o neto e fazendo-o perder o emprego; todavia o matrimônio é alegrado com o nascimento de Ombretta (Mariú Pascoli). A Lombardia está ainda sob o domínio austríaco e Franco é preso por suas idéias políticas. Durante sua ausência da casa, Ombretta cai no lago e se afoga; a jovem mãe fica num estado de profunda depressão e põe a culpa do acidente no marido, que se dedica à política neglicenciando a família. Enquanto a condessa toma consciência da angústia provocada a Franco e à sua família e restitui o patrimônio ao jovem, Luisa consegue superar a profunda crise, que quase a levara a perder o marido, e se reconcilia com ele.

O estilo de Soldati é meticuloso, elegante, valorizando a cenografia dos interiores, a sugestiva paisagem lacustre e a fotografia contrastada. É uma escritura bela e solene, de feição melodramática, capaz de evocar um universo distante com propriedade e verosimilhança.

As seqüências mais expressivas do filme são, na primeira parte, o baile no campo, e na segunda parte, a morte de Ombretta, o reencontro de Luisa com a marquesa sob chuva e a corrida pelas escadas da cidade das mulheres que vêm trazer a Luisa a noticia da desgraça.  Esta segunda seqüência fica na nossa memória graças sobretudo à atmosfera de tempestade que varre as pessoas e as coisas na margem do lago e ao uso incisivo da montagem, alternando a caminhada endemoniada de Luisa até se deparar com a liteira da condessa com  o jogo solitário e fatal  da criança com o seu barquinho no pequeno porto da casa e também com a chegada das mulheres  esbaforidas, anunciando a tragédia.

O filme tem uma beleza formal impressionante e isso se deve muito aos seus operadores de câmera e especialmente ao fotógrafo Arturo Gallea, que realizou as tomadas em exteriores mais belas de todo o cinema italiano. A utilização dramática da paisagem – ou seja, não como mera ilustração, mas como elemento emotivo e indicador dos sentimentos dos personagens –  e  o encanto do rosto de uma Alida Valli ainda bem jovem e sua interpretação (premiada no Festival de Veneza) sóbria, quase seca, vibrante, com uma compreensão constante de seu papel nada fácil, enriquecem ainda mais o espetáculo.

Tragica notte / 1942 foi baseado livremente no romance La trappola (1928) de Delfino Cinelli. Libertado da prisão, o taberneiro Nanni (Andréa Checchi), ajudado por alguns companheiros, dá uma surra no guarda Stefano, que o havia denunciado como invasor de uma reserva de caça. Dois anos depois, ainda pensando em se vingar, Stefano faz crer a Nanni que, enquanto ele estava preso, sua mulher, Armida (Doris Duranti), o traiu com o conde Paolo Martorelli (Adriano Rimoldi), proprietário das terras reservadas à caça. Cego pelo ciúme e instigado por Stefano, Nanni decide matar o conde durante uma emboscada à noite; porém, Nanni percebe que caiu numa armadilha e mata Stefano, que atirara nele. O conde, que era amigo de Nanni desde a infância e já tinha conhecimento de tudo, declara à polícia ter matado o próprio empregado num acidente de caça, assumindo toda a responsabilidade.

O filme é um melodrama tenso e soturno, abordando o tema da vingança. Achei as cenas com pouca vibração – talvez por causa da lentidão dos gestos e das falas dos atores ou pela inexpressividade da atriz principal. Porém apesar dessa frieza, a narrativa tem boa continuidade e prende a atenção do começo ao fim. O que o espetáculo tem de melhor, são as cenas filmadas em ambientes naturais, na cidade de Florença e nas montanhas de Maremma na Toscana. Tanto a paisagem citadina quanto a rural é captada com evidente preocupação quanto à beleza formal, surgindo algumas passagens cinematograficamente virtuosas como a punição de Stefano logo no início, a debulha do trigo e o confronto final entre Nanni e Stefano. Outro ponto positivo da realização são os interiores, escuros e claustrofóbicos, projeções ideais do tormento psicológico dos protagonistas, servindo como exemplo, as escadas em espiral da torre, onde ocorre a conversa entre Armida e o conde enquanto a mãe dela e Stefano continuam subindo até o topo do edifício.

Malombra / 1942, transcrição fílmica do primeiro romance (1881) de Fogazzaro (já levado à tela por Carmine Gallone com Lyda Borelli em 1916), repete a mesma ambientação lacustre de Pequeno Mundo Antigo, desta vez direcionada para uma tonalidade turbulenta e gótica. Em um castelo italiano situado na margem do lago de Como, o conde Cesare d’Ormengo (Gualtiero Tumati), cuida severamente de sua bela sobrinha Marina di Malombra (Isa Miranda). Ela vive confinada ali desde a morte de seus progenitores e o tio só a deixará partir, quando se casar. No seu quarto, Marina descobre, escondida numa velha espineta, uma mecha de cabelos, uma luva e um manuscrito pertencente a Cecília Varrega, ancestral de Marina, que foi seqüestrada e mantida prisioneira pelo marido ciumento, por ter cometido adultério com um certo Renato. A descoberta do manuscrito e a leitura de “Fantômes du Passé”, um romance sobre reincarnação, perturbam Marina, a ponto de se convencer de que Cecília reencarnou-se nela e lhe pede para vingá-la. Ela crê reconhecer no seu tio a reencarnação do marido de Cecília e, quando um jovem escritor, Corrado Silla (Andréa Checchi), autor anônimo de “Fantômes du Passé”, chega ao castelo, convidado pelo conde para ser seu secretário, Marina acha que ele é, por sua vez, uma reencarnação de Renato. Entre Corrado e Marina nasce uma atração, mas os dois, orgulhosos, acabam se rechaçando. Corrado parte para Milão, onde conhece Edith (Irasema Dilian), a filha adorada do secretário húngaro do conde Cesare, Andréa Steinegge (Giacinto Molteni). Os dois se apaixonam. Chamado por um telegrama, Corrado volta ao palácio e encontra o conde agonizante. Dominada pelo delírio, Marina confessa ter se revelado ao conde como Cecília e de haver perpetrado sua vingança, provocando-lhe uma intensa emoção. O conde morre. Corrado toma a resolução de se afastar do palácio. Marina-Cecilia, sentindo-se traída por aquele que considera seu amante, mata-o com um tiro de pistola e depois se suicida nas águas do lago. Sabendo da morte de Corrado, Edith, se desespera, mas a fé em Deus a salvará.

Malombra é uma imersão no fantástico absolutamente inédita no cinema italiano, crônica de uma melancolia clínica impressionante por sua beleza e seu mistério. O diretor utilizou com muita habilidade a paisagem e os cenários – maravilhosamente iluminados em claro-escuro por Massimo Terzano -, o vento e a música, para criar a atmosfera romântica, mórbida, sensual e sinistra, a infinita tristeza e a loucura demoníaca de Marina. A evocação do século dezenove aristocrático no seu esplendor decadente é visual e dramaticamente impecável – um modelo que seria seguido por Luchino Visconti.

Para o papel de Marina, Soldati queria Alida Valli, a protagonista de Pequeno Mundo Antigo; mas, apesar de seus esforços, disseram-lhe que a Valli não estava disponível. Entretanto, Isa Miranda impôs sua presença e expressou perfeitamente a ambigüidade da personagem, às vezes  fascinante, em outras vezes, nada simpática.  Só que não há mistério. Desde a sua primeira aparição em cena, já é uma jovem neurótica em busca da morte.

A melhor cena do filme começa durante o banquete fúnebre ordenado por Marina em honra do defunto, sob a luz de velas (com véus negros enrolados nos candelabros) e o som da ventania. Logo após, Marina se depara com Corrado, que vai partir e lhe diz: “Boa viagem”; atira com a pistola e o mata. Em seguida, sai de barco sob a tempestade, e desaparece no meio do lago.

Le miserie di signor Travet / 1945 baseia-se numa peça de Vittorio Berzesio, um escritor socialista; por isso, o filme só pôde ser realizado após a queda do fascismo. A ação se desenvolve em 1863 na cidade de Turim, que se tornara a capital do reino da Itália. Trata-se de uma sátira ao governo, da burocracia, que abrange a corrupção, os funcionários que recebem propina, as intrigas de toda espécie, o peso da hierarquia.

Ignazio Travet (Carlo Campanini) trabalha com afinco na mesma repartição há 33 anos, sem nunca ter conseguido uma promoção. Ele é um homem pacífico e indulgente e não ousa rebelar-se quando sua esposa, Rosa (Vera Carmi), uma mulher enérgica e bela, o trata mal e o faz saber das suas ambições. O poderoso diretor da repartição, Comendador Francesco Battilocchio (Gino Cervi), não tarda a assediar Rosa. Battilocchio convida Travet e sua mulher para o teatro e passa a freqüentar a casa deles. O chefe da seção (Luigi Pavese) e os colegas de Travet o caluniam e ridicularizam, até que o modesto escriturário explode e perde o emprego. O comendador acaba admirando o caráter de Travet e anula a despedida. Porém Travet, que se tornou um homem diferente e mais seguro de si mesmo, não aceita voltar para a sua repartição, e vai trabalhar como contador na padaria do futuro genro.

O acurado estudo psicológico dos personagens, a perfeita ambientação de uma Turim do século dezenove (recriada num estúdio em Roma), a música caricatural de Nino Rotta, e a excelência do elenco – do sofredor Carlo Campanini, à irritável Vera Carmi, do confiante Gino Cervi ao vaidoso Luigi Pavese, sem falar no leviano e irritante Alberto Sordi num papel pequeno, mas que chamou a atenção para a sua exuberância, ideal para a “commedia all’italiana” – muito contribuíram para o brilho da encenação.

Com Eugenia Grandet / Eugenia Grandet / 1946 Mario Soldati prossegue, na contramão do movimento neo-realista, seu ciclo de adaptações literárias iniciado em 1941. Felix Grandet (Gualtiero Tumiati), antigo tanoeiro, enriqueceu durante a Revolução. Como é avarento, ele vive uma existência mesquinha em Saumur, numa casa sombria, tiranizando sua mulher (Giuditta Rissone), a criada Nanon (Pina Gallini) e a filha Eugénie (Alida Valli). Modesta e submissa ao despotismo de seu pai, Eugénie é a herdeira mais rica do país e os pretendentes de duas famílias locais, a dos Cruchot e a dos Des Grassins, disputam sua mão; porém a jovem, indiferente a tudo, vive reclusa e se enfraquece como uma flor privada de luz. O senhor Grandet recebe em sua casa um sobrinho, cujo pai pedira falência e se suicidara. Eugénie se sente atraída pelo primo Carlo (Giorgio De Lullo), elegante dândi parisiense; e o amor, misturado com piedade, a leva ao sacrifício: ela oferece ao primo todas as suas economias, uma dezena de moedas de ouro, que seu pai lhe dava, uma a uma, no dia de seu aniversário. Assim, Carlo poderá partir para as Índias, a fim de fazer fortuna. Eugénie perde a mãe e, logo depois, o pai. Quando, depois de sete anos, Carlo finalmente reaparece, ele diz a Eugénie que vai se casar com uma jovem aristocrática. Mas o contrato de matrimônio corre o risco de ser rompido, porque Carlo é filho de um falido. Eugénie compra os créditos em nome de Carlo. A cerimônia do casamento de Carlo tem lugar no mesmo dia do que a de Nanon. Eugénie ficará sozinha na casa triste que viu desabrochar e murchar o único amor de sua vida.

O romance de Balzac foi ligeiramente modificado, mas a adaptação, de um modo geral, tem grandes méritos, apoiando-se na construção dos cenários – conseguindo marcar com exatidão, por exemplo, a sordidez da casa de Grandet e a sua atmosfera sufocante -, nos enquadramentos e movimentos de câmera judiciosos, na fotografia e, principalmente, nos dois personagens centrais, o velho usurário e sua filha.

A excelente atuação de Gualtiero Tumiati, que interpreta o usurário Grandet com um admirável e sóbrio realismo (se esquecermos o exagero interpretativo de alguns momentos decisivos como a descoberta da “doação” de Eugénie ao primo e o de sua morte) e a de Alida Valli, perfeita como a filha devotada ao pai apesar de sua tirania e como  mulher abandonada, valorizando no silêncio de sua dignidade a figura criada por Balzac são, sem dúvida, o ponto alto da realização. Por seu desepenho, Alida ganhou o Nastro d’Argento, prêmio conferido anualmente pelo Sindicato Nacional dos Jornalistas Cinematográficos Italianos.

Não consigo me esquecer da cena na qual, após a última partida de Carlo, vemos Eugenia de pé, bem diante da câmera. Nanon se aproxima por trás dela e pergunta, com a sua imagem meio desfocada: “Quando é que ele volta?”. Eugenia, com lágrimas nos olhos, responde: “Nunca mais”.

A Insatisfeita / La provinciale / 1953, adaptação do romance de Alberto Moravia, é um drama envolvente e amargo, muito corajoso (para a época), que mantém quase intacto na tela o retrato burguês traçado na obra de Moravia. De um lado o mundo provinciano hipócrita e intolerante e de outro a figura da protagonista feminina, lentamente induzida à prostituição.

Num acesso de furor, Gemma (Gina Lollobrigida) fere com uma faca sua amiga Elvira Coceanu (Alda Mangini), e desmaia. Quando recobra a consciência, Gemma conta seu passado para o marido, o professor Franco Vagnuzzi (Gabriele Ferzetti). Ainda bem jovem, ela se apaixonou por seu amigo de infância, Paolo Sertori (Franco Interlenghi). Apesar da diferença de suas condições sociais, o casamento parecia que ia se realizar, quando a mãe de Gemma (Nanda Primavera) lhe revela que Paul era seu meio-irmão. Foi então que Gemma se casou com o professor, inquilino de um dos quartos alugados por sua mãe. Absorvido pelos seus estudos, Franco descuida-se das exigências sentimentais de Gemma. Insatisfeita, ela faz amizade com a condessa Elvira, mulher venal, que induz a jovem a se tornar amante de Luciano Vittori (Renato Bladini). A relação com Vittori é apenas um breve parêntesis, após o qual Gemma se reaproxima do marido e, durante uma viagem, fica conhecendo-o melhor. No retorno, Gemma encontra a condessa instalada na sua casa, ameaçando-a de chantagem. Quando Franco obtém sua transferência para Roma, Gemma Vê uma oportunidade de libertação; mas a condessa lhe assegura que a seguirá até a capital. Exasperada, Gemma ataca-a com a faca, ferindo-a. Depois desta crise, Franco mostra-se compreensivo e esquece tudo o que aconteceu.

O filme é um estudo interessante do caráter de uma mulher decepcionada nas suas aspirações amorosas, cuja solidão moral, deixa-a a mercê de uma amiga sem escrúpulos, que a impele, por interesse, para o lenocínio. Gemma, jovem de origem modesta, faz de tudo para se evadir de uma vida que lhe parece monótona e sem emoções, para buscar o “sonho” cintilante da alta sociedade, até chegar à inevitável desilusão e depois descobrir os verdadeiros valores.

Num papel delicado, exigindo por parte da artista uma grande variedade de atitudes e de expressões, Gina Lollobrigida se impõe pela diversidade de seus dons, passando do entusiasmo da juventude à resignação e depois à revolta com uma intensidade sempre adequada e um charme sensual bastante acentuado.

Gabriele Ferzetti, frio e distante, como seu personagem o exigia, na primeira parte do filme traduz com sinceridade o egoísmo de um sábio, para o qual a mulher não passa de um brinquedo, que ele encontra todo dia com prazer.

Alda Mangini faz uma criação teatral de um cinismo impressionante.

Nas palavras do próprio Soldati, “La provinciale é um filme que eu subscrevo inteiramente. Sustenta-se bem como o passar do tempo. Considerando-se tudo, creio que é o meu melhor filme”.

Mario Soldati compartilhou uma intensa atividade de roteirista, e depois de diretor, paralelamente a uma igualmente intensa, e mais duradoura, atividade literária. Ele funcionou sempre dentro da estrututura da indústria sem nunca rejeitá-la, às vezes submetendo-se quase masoquisticamente a ela, como no período 1950-1952, quando realizou seus filmes “alimentares” (vg. Quel bandito sono io, Botta e risposta, È l’amor che mi rovina, Il sogno di Zorro, I tre corsari, A Filha do Corsário Negro / La figlia del Corsaro Nero), segundo ele mesmo explicou, “porque tinha família; era preciso trabalhar”.

Em 1959, Soldati abandona a direção e se dedica com continuidade à sua carreira de escritor, produzindo, entre outros, Le due città (1964) e La sposa americana (1978) que, ao lado de La verità sul caso Motta (1941), Fuga in Italia (1947), La giacca verde (Le lettere da Capri (1953), La confessione (1955), que estão  entre os seus livros mais celebrados.

Na televisão, ele fez uma pesquisa para a RAI, Viaggio nella valle del Po alla ricerca dei cibi genuini (1957) e a reportagem Chi legge? Viaggio lungo il Tirreno(1960) dedicando-se ainda à crítica cinematográfica.

Em 2006, ano do seu centenário, a grande surpresa foi a descoberta do interesse pelo seu cinema e, em geral, de todo o cinema italiano dos anos 1941-1945.

A partir de então, o número de simpatizantes de Mario Soldati só vem crescendo.

FILMOGRAFIA

1939 – Due millioni per um sorriso, Dora Nelson. 1940 – Tutto per la donna. 1941 – PEQUENO MUNDO ANTIGO / Piccolo mondo antico. 1942 – Trágica Notte, Malombra. 1945 – Chi è Dio? (curta-metragem), Quartieri alti, Le miserie del signor Travet. 1946 – EUGENIA GRANDET / Eugenia Grandet. 1947 -À BEIRA DA PERDIÇÃO / Daniele Cortis. 1948 – Fuga in Francia. 1950 – Quel bandito sono io, Botta e risposta. 1951 – Donne e briganti, È l’amor che mi rovina, O.K.NERO / O.K. Nerone. 1952 – Il signo di Zorro, Le avventure di Mandrin, Il tre corsari, YOLANDA, A FILHA DO CORSÁRIO NEGRO / Jolanda, la figlia del Corsaro Nero. 1953 – A INSATISFEITA / La provinciale. 1954 – Il ventaglino (episódio de Questa è la vita), La mano dello straniero, A MULHER DO RIO / La donna del fiume. 1956 – MARIDO SOB PROTESTO / Era di venerdi 17. 1957 – Italia picola. 1959 – Policarpo, “ufficiale di scrittura”, Orta mia (curta-metragem). Obs. Em 1956, Soldati foi diretor de 2ª Unidade de Guerra e Paz / War and Peace (Dir: King Vidor) e, em 1990, dirigiu um curta-metragem de oito minutos, Torino para o Istituto Luce e.o Ministero Del Turismo e dello Spetacolo.