AKIRA KUROSAWA
setembro 30, 2010
Clássico na forma e romântico na essência, Akira Kurosawa (1910 – 1998) é um cineasta eclético, passando dos dramas históricos de samurais às adaptações da literatura ou à crítica da sociedade contemporânea, sem que isto, no entanto, signifique ausência de uma temática constante. “Todos os meus filmes têm uma coisa em comum: por que os homens não podem mais serem felizes juntos?”.
Na sua obra densa, onde se conjugam a alma japonesa e os valores universais, o ideal humanista está subordinado à Beleza que jorra em imagens esplêndidas, criadas com notável senso plástico, exímia e espantosamente simples mise-en-scène, noção rigorosa de montagem e a audácia de um sábio contador de histórias.
Akira Kurosawa nasceu em Tóquio, filho de um militar que logo se desligou do Exército, tornando-se professor de educação física. Durante o curso primário, foi aluno de Tachikawa, pioneiro no ensino de arte para crianças, e começou a se interessar pela pintura. Ao completar os estudos secundários, matriculou-se na Escola Doshusha de Belas-Artes, orientada por padrões ocidentais. Embora demonstrando seu talento, teve que trabalhar para se sustentar, ilustrando revistas femininas.
Depois de Tachikawa, Kurosawa sofreu influência do irmão, Heigo, que exercia a função de benshi, narrador-comentarista usado habitualmente nos cinemas japoneses durante a época da cena muda. Heigo levava o irmão mais moço para ver filmes e conversava muito com ele sobre literatura. Em 1935, Heigo suicidou-se por motivos ignorados.
Um ano depois, Kurosawa respondeu a um anúncio da Photo Chemical Laboratories (PCL), que desejava testar candidatos para assistência de direção. “O anúncio pedia que os candidatos enviassem um ensaio por escrito, apontando os defeitos básicos dos filmes japoneses e como poderiam ser corrigidos. Pensei com os meus botões: se o defeito é básico, como corrigi-lo? Mas escrevi algo, e remetí ao estúdio. Cerca de quinhentas pessoas compareceram. Mostraram-nos um recorte de jornal sobre um operário que se apaixonara por uma dançarina e nos mandaram fazer um tratamento cinematográfico do fato”.
Recomendado pelo consagrado diretor Kajiro Yamamoto, seu examinador nas provas orais, Kurosawa foi admitido na PCL e ali, com ele, aprendeu o oficio de cineasta. “Nas várias crises da minha vida, havia sempre alguém – Tachikawa, meu irmão, Yamamoto -para me ajudar, me ensinar, me empurrar para a frente”. Além de servir como assistente de direção de Yamamoto, Kurosawa escreveu roteiros para outros diretores e, finalmente, em 1943, passou à direção, realizando seu primeiro filme, Sanshiro Sugata.
Nesta homenagem ao grande cineasta, com a devida vênia, vou lembrar apenas 12 filmes dele, que são os meus preferidos.
O primeiro filme que quero destacar é uma produção de 1949, Cão Danado / Nora- Inu, cuja história se baseia num fato que realmente aconteceu. Kurosawa escreveu um romance a respeito (“Gosto muito de Georges Simenon e queria fazer algo à sua maneira”) e depois adaptou-o para a tela.
Num dia de calor intenso, o jovem policial, Murakami (Toshiro Mifune), ao descer de um bonde superlotado, percebe que seu revolver foi furtado. Ele pede demissão, mas seu superior lhe dá a chance de recuperar a arma. Murakami sai à procura do ladrão pelo submundo de Tóquio, ajudado pelo seu colega mais velho, Comissário Sato (Takashi Shimura). Eles suspeitam de uma mulher que estava no bonde, a dançarina Harumi (Keiko Awaji). Ela nega a autoria do furto, porém lhes dá uma pista para identificar o criminoso, que foge, depois de ter ferido Sato. Inebriado pelo desejo de vingança, Murakami chega finalmente ao esconderijo do malfeitor, Yusa (Isao (Ko) Kimura) e, embora ferido, após uma perseguição pelos pântanos, consegue algemá-lo. Yusa é um pobre homem, lastimável, que se parece com Murakami, mas não teve a mesma oportunidade que ele na vida. Neste momento o policial descobre que o bandido não é um monstro, mas um ser humano, um irmão.
A confusão proposital entre o policial e o ladrão enriquece o filme. Murakami confessa um dia a Sato que ele compreende o gesto do ladrão: ser policial ou fora-da-lei, tudo é uma questão de meio, de destino. Ele diz para Sato: “Não há gente má no mundo. Apenas ambientes maus”. Murakami compreende que Yusa é, como ele, uma vítima da guerra e da derrota.Yuza caiu numa espiral de violência (“Cão perdido torna-se cão danado”, diz o comissário Sato a propósito do ladrão). Na excelente perseguição final em plena natureza, os dois homens lutam num campo florido. O policial consegue colocar as algemas no assassino e os dois homens caem extenuados na relva, numa atitude perfeitamente simétrica.
O filme pode ser lido como uma descida ao inferno de um homem à procura de seu alter ego “mau”. Quando Murakami perde a pistola, ele perde a sua identidade. Sem a arma, fica sem nada, perde sua posição, seu lugar na sociedade. Passa a ser um cão perdido. Depois que um primeiro assassinato é cometido com sua arma, sua busca passa a ser uma obsessão e ele se transforma, tal como o ladrão, num cão danado.
Entretanto, Cão Danado é mais do que um filme policial. Ele é um filme neo-realista, totalmente em sintonia com a sua época e com a situação do Japão no pós-guerra, quando ocorreu a adoção de novos costumes (as mulheres se vestem à moda européia e dançam ao som do boogie-woogie, as partidas de basebal causam furor) e a formação de uma nova sociedade (a juventude desencaminhada, confundindo o Bem com o Mal, entregando-se ao pessimismo).
A investigação de Murakami o obriga a penetrar nos bairros mais pobres, onde se alastra o mercado negro e os pequenos tráficos, que permitem a sobrevivência de um grande número de miseráveis. Este ambiente é retratado num estilo semi-documentário parecido com o de Cidade Nua / Naked City / 1948 de Jules Dassin, (que teria servido de modelo para o diretor) e, como não podia deixar de ser num filme de Kurosawa, .impregnado de um profundo humanismo.
Premiado com o Leão de Ouro no Festival de Veneza de 1951 e com o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, Rashomon /Rashomon / 1950 projetou o cinema japonês para o mundo, revelando internacionalmente o talento de seu diretor.
No século XI, em Kyoto, três homens – um sacerdote budista (Minoru Chiari), um lenhador (Takashi Shimura) e um servo (Kichijiro Udea) – se abrigam da chuva torrencial sob o pórtico de um templo em ruínas. Ao servo, cínico e perspicaz, os outros dois narram uma história de um crime ocorrido três dias antes na floresta próxima, envolvendo o samurai Takehiro (Masayauki Mori), sua mulher, Masago (Machiko Kyo) e o bandido Tajomaru (Toshiro Mifune). Os retrospectos evocam os quatro depoimentos, o do bandido, o da mulher, o do marido morto (por meio de um médium) e o do lenhador, testemunha ocular do fato, prestados diante de um tribunal, que jamais é visto. As quatro versões são diferentes umas das outras, e a verdade não vem a tona.
Ao findar o relato, o sacerdote sente sua fé abalada por acontecimentos tão cruéis e pela acumulação de tantas mentiras, e vê com aflição um gesto de cupidez por parte do servo, que se apodera dos agasalhos de uma criança abandonada. Somente o remorso do lenhador – por ter cometido um furto no momento do crime – e sua decisão de adotar a criança, salvam o sacerdote do desespêro total, e fazem com que ele se reconcilie com a humanidade.
O título mesmo de Rashomon (“A Porta dos Demônios”), nos indica a verdadeira intenção do autor do filme: o drama essencial se passa sob o Pórtico, onde se confrontam o sacerdote, o lenhador e o servo, a fé e o espírito de negação. O drama da floresta não é senão a ilustração ou o pretexto deste debate, no qual um fala em nome da humanidade e o outro faz uma escolha definitiva contra ela.
Partindo de dois contos do escritor Ryunosuke Akutagawa, Kurosawa criou sua primeira obra-prima. O tema, segundo o diretor, é a incapacidade do ser humano de falar sobre si mesmo com total honestidade. O roteiro retrata aqueles que não podem sobreviver sem mentiras, para fazê-los sentir que são pessoas melhores do que realmente são. As mentiras de cada um nascem da recusa de se aceitar a si mesmo, com suas covardias e mesquinharias, sobretudo no que concerne à mulher – de um desejo inconfessado, mais ou menos consciente, de autopunição. A grande particularidade de Rashomon foi revelar a personalidade de seus protagonistas, não pelas suas ações, mas pelas suas mentiras.
Meditação patética, tensa e vertiginosa sobre esses estranhos impulsos do coração humano, expressa através de um jogo elaborado de luz e sombras e de um arsenal simbólico, o filme é plasticamente excepcional. O estilo visual – com suas brilhantes composições triangulares – inspirou-se na técnica do cinema silencioso. Numa entrevista o cineasta explicou: “Gosto dos filmes mudos, sempre gostei. Eles geralmente são mais belos do que os falados…Tentei restaurar um pouco dessa beleza”.
O Idiota / Hakuchi / 1952 é uma adaptação modernizada do romance de Dostoievsky, transferindo o ambiente de São Petersburgo do século XIX para a ilha de Hokkaido no norte do Japão no século XX.
O Príncipe Myshkin do romance é transformado num ex-soldado da Segunda Guerra Mundial de nome Kameda (Masayuki Mori), sujeito a crises de epilepsia, que escapou de ser fuzilado e passa a ter como filosofia de vida a bondade e a compaixão, dedicando-se à salvação da pecadora Taeko (Nastasyia Filippovna / Setsuko Hara), que é amada pelo bruto e obsessivo Akama (Rogozhin / Toshiro Mifune). Desvairado pelo ciúme, Akama mata Taeko e, num desenlace diferente do livro, ele e Kameda ficam loucos.
Kurosawa declarou: “Desde a juventude tinha o gosto pela literatura russa, especialmente por esse romance. Sempre pensei que daria um filme maravilhoso. Dostoievsky ainda é meu autor predileto e quem escreve mais honestamente sobre a existência humana …Acho que fui bem sucedido ao fazer o que eu queria. Distorcí o romance certamente, mas creio que coloquei mais de mim neste filme do que em qualquer outro”. A nosso ver, apesar das modificações e dos cortes sofridos (o filme tinha 4.25hs. e foi reduzido a 2.46hs.), Kurosawa manteve o espírito do romance do célebre escritor russo.
O filme de Kurosawa acrescentou um elemento visual à obra de Dostoievksy: a paisagem. O elemento exterior é o reflexo da alma dos personagens. A neve, por exemplo, não somente dá ao espetáculo uma tonalidade estranha, quase irreal, oscilando entre onirismo e realidade, como também revela o estado d’alma daquelas criaturas atormentadas. Porém o estilo fotográfico empregado pelo diretor é discreto (branco e cinza e uma luz suave e difusa), nada parecido com a maneira turbulenta, mais estilizada (com seus contrastes de branco e preto e luz solar brilhante) de seus trabalhos anteriores Cão Danado e Rashomon.
Masayuki Mori fez bem o papel do “idiota” mas, na minha opinião, não sobrepujou a magnífica atuação de Gerard Philipe na versão de Georges Lampin, realizada cinco anos antes, assim como o desempenho de Setsuko Hara não pode ser comparado com o da eletrizante Filippovna de Edwige Feuillère. Interpretações do mesmo nível são as de Toshiro Mifune e Lucien Coëdel, o Rogozhin do filme francês.
Em Viver / Ikiru / 1952, Kanji Watanabe (Takashi Shimura), velho burocrata, chefe do Departamento de Assistência Social da prefeitura de uma cidade do interior, fica sabendo que está com câncer e tem apenas alguns meses de vida. Viúvo e morando com o filho casado, que o trata com frieza, ele de repente toma consciência de sua solidão e da inutilidade de sua existência. No começo, falta ao emprego, entrega-se à bebida e aos prazeres mundanos. Depois, animado por uma jovem colega de repartição (Miki Odagiri), que abandonara a papelada inútil para trabalhar numa fábrica de brinquedos, retorna à seção para realizar algo de útil. Remexendo papéis, encontra um requerimento pedindo a construção de um parque infantil em um local insalubre. Superando todos os empecilhos, consegue completar o projeto e morre no dia da inauguração.
O filme se divide em duas partes: na primeira, um narrador explica que o protagonista foi vitimado pela doença e em seguida vemos o desenrolar dos acontecimentos até a decisão de Watanabe de consagrar seus últimos dias, especialmente às crianças, utilizando enfim o seu cargo para realizar alguma coisa. A segunda parte continua cinco anos mais tarde, após a morte de Watanabe, por ocasião da cerimônia fúnebre que reúne sua família e seus colegas. No curso de retrospectos sucessivos, as circunstâncias de sua morte e os detalhes de seu último combate contra o imobilismo da administração e as lutas entre os diversos serviços do município são revelados. Agora, completamente a par das motivações de Watanabe – a proximidade de sua morte, suas frustrações e a futilidade de sua vida -, nós podemos ver como sua ação é mal interpretada por quase todos que viviam em torno dele.
Kurosawa faz uma penetrante crítica social e um perfeito estudo da inquietude humana. É uma denúncia da hipocrisia no Japão do pós-guerra e sua burocracia e conclui mostrando como um ato significativo pode superar o vazio de uma existência.
A cena que mais me impressionou foi quando Watanabe (interpretado magnificamente por Takashi Shimura) senta num balanço e, debaixo da neve que cai, contempla amorosamente o parque recentemente construído. Em paz consigo mesmo e com o mundo, ele começa a entoar uma canção. É um momento tocante, difícil de conter as lágrimas mesmo sabendo que o personagem está feliz.
Os Sete Samurais / Schinin no Samurai / 1954 é incontestavelmente o filme mais conhecido de Kurosawa, sucesso comercial e de crítica, tendo inclusive causado uma refilmagem americana, Sete Homens e um Destino / The Magnificent Seven em 1960, dirigida por John Sturges.
No Japão do século XVI, época bem tormentosa da história desse país, bandidos pilham e dizimam aldeias. Cansados dessa devastação e seguindo o conselho de seu patriarca, os habitantes de uma pequena vila resolvem enviar emissários à cidade, a fim de contratarem samurais para a defesa. Momentaneamente sem recursos, seis samurais aceitam a missão, em troca de alimentação e hospedagem: Kambei (Takashi Shimura), Kyuzo (Seiji Miyaguchi), Heihachi (Minoru Chiaki), Gorobei (Yoshio Inaba), Katsushiro (Ko Kimura), e Shiichiroji (Daisuke Kato). A eles se junta o impetuoso Kikuchiyo (Toshiro Mifune), um camponês meio maluquinho, cuja família fora exterminada e por isso deseja se vingar. Ele se torna o sétimo samurai da milícia. Após vários ataques, os bandidos são derrotados e enquanto se reinicia a colheita do arroz os três samurais sobreviventes partem com um certo amargor com relação ao seu destino de cavaleiros andantes e um pouco de nostalgia por aquela vida sedentária e pacífica. “Os samurais passam sobre a terra como o vento, mas a terra permanece e os lavradores trabalharão nela para sempre”.
É uma crônica histórica, animada por um sopro épico e um compasso nervoso. A ação, pontuada de gritos agudos e de golpes de sabre, não fica devendo nada ao ritmo dos westerns americanos (Kurosawa adorava John Ford, sua primordial influência como realizador de filmes) e, através dela, o cineasta envia uma mensagem moral e traça o caráter psicológico dos homens.
O espetáculo faz igualmente uma análise sutil das classes sociais. Desde a chegada dos samurais à aldeia, surge um paradoxo: os camponeses têm uma admiração, uma gratidão e um respeito profundos pelos guerreiros: porém eles não podem deixar de desconfiar deles.
Tem uma cena na qual os samurais estão refletindo sobre a melhor maneira de preparar a defesa da aldeia, quando chegam alguns camponeses, oferecendo-lhes armas. A gente percebe logo que elas foram roubadas de samurais mortos. “E nós que estamos aqui para defender esses assassinos! Seria melhor matá-los!”, exclama um samurai. Kikichyo toma a palavra e faz um discurso em favor dos camponeses: “Quando eles sentem que vai haver uma batalha, esses animais velhacos e desleais se põem a caçar os feridos e os vencidos!… Mas quem os transformou em animais? Vocês todos, malditos samurais! Cada vez que vocês combatem, vocês queimam as aldeias, destroem as colheitas, levam os alimentos, violam as mulheres e fazem dos homens seus escravos!” Para salvar a aldeia é preciso superar esta “incompatibilidade social”. Por força das circunstâncias ocorre uma aproximação. Os camponeses aprendem a conhecer melhor os samurais e estes começam a medir todo o peso do sofrimento contido em cada grão de arroz. As cenas finais de combate na chuva e na lama, filmadas simultaneamente por diversas câmeras, estão entre as mais sensacionais da História do Cinema.
Em Trono Manchado de Sangue / Kumonosu-jo / 1957 Kurosawa faz uma transposição da peça Macbeth de Shakespeare para o Japão da Idade Média com algumas alterações do original. Macbeth se transforma no General Washizu (Toshiro Mifune). Este, voltando vitorioso de um combate com seu companheiro de armas Miki (o Banquo de Shakespeare encarnado por Minoru Chiaki), perdem-se na floresta. Ali encontram um espírito feminino espectral, que profetiza para Washizu uma ascenção rápida ao poder e a Miki, uma glória mais lenta, porém mais durável: seus filhos prevalecerão no trono. Instigado pela mulher, Asaji (Isuzu Yamada), a quem contou a predição, Washizu assassina o soberano e ocupa seu lugar. Miki, será a segunda vítima e, numa segunda visita à feiticeira, esta diz a Washizu que ele será invencível enquanto a floresta não se mover. O filho de Miki ataca o castelo, camuflando os guerreiros com pedaços de árvores da floresta e Washizu e Asaji perdem suas vidas.
Realizado nos moldes do teatro japonês clássico, com despojamento cenográfico e interpretações grandiloquentes, o filme nos faz descobrir Macbeth como qualquer coisa de novo. Em vez da lenta desintegração de um homem e uma mulher pelo remorso temos um conto filosófico sobre o Destino, tema que Kurosawa valoriza por meio de imagens admiráveis como, por exemplo, a vertiginosa corrida a cavalo na floresta, transformada em labirinto; as cenas de batalha; a cena do entêrro imponente do soberano e a morte de Washizu crivado de flechas.
O discurso do fantasma da floresta na seqüência de abertura, indica claramente a mensagem poética de Kurosawa. “A vida das flores é curta: só dura um instante. Elas acabam por murchar e morrer e depois apodrecem sobre a terra. Porém os homens refutam esta condição. Desde o seu nascimento, eles são prisioneiros de suas paixões, eles queimam sua vida imoderadamente nas chamas dos cinco Desejos. Eles acumulam seus pecados, aumentando seus sofrimentos. E quando eles morrem o seu corpo apodrece. E sobre esta podridão vão crescer as flores. É assim que o odor da podridão se transforma em delicada fragrância”.
Transferindo o ambiente da peça de Gorki da Rússia Imperial para o Japão (então chamado Edo) nos meados do século XIX, Kurosawa nos dá em Ralé / Donzoko / 1957, uma versão mais claustrofóbica do que a de Jean Renoir (Basfonds / Les Basfond / 1936) e, com realismo cruel, explora os desejos e motivações do ser humano numa patética descida aos infernos.
Num imenso e sujo galpão de madeira, de propriedade de um casal de cínicos usurários Rokubei e Osugi (Ganjiro Nakamura, Isuzu Yamada), amontoa-se um pequeno grupo de marginalizados, entre eles: um jogador amoral, Yoshisaburo (Koji Mitsui); um ladrão, Sutekichi (Toshiro Mifune), que é amante de Osugi e apaixonado pela irmã desta, Okayo (Kyoko Kagawa); uma prostituta, Osen (Akemi Negishi); um ator alcoólatra (Kamatari Fujiwara); um pretenso samurai (Minoru Chiaki); um artesão desempregado (Eijiro Tono) e uma velha moribunda (Eiko Miyoshi). No meio dessas “criaturas que uma vez já foram homens”, surge um suposto peregrino, Kahei (Bokuzen Hidari), que irradia a sabedoria e a bondade e depois parte misteriosamente, tal como chegara.
O filme de Kurosawa é uma adaptação bastante fiel da peça de Maximo Gorki. O texto original é respeitado na maior parte do tempo, com pequenas abreviações para evitar uma duração muito longa do espetáculo. O filme mantém inclusive a estrutura de quatro atos da peça com escurecimentos usados para marcar o final de cada ato. O diretor preservou o espaço cênico restrito do albergue mas com inventividade cinematográfica conseguiu evitar o teatro filmado e espelhar a face trágica da miséria. Há uma grande variedade técnica no uso dos enquadramentos, angulações, composições e cortes rápidos bem como um admirável jôgo de luz e sombra na soberba fotografia em preto e branco.
Os personagens passam o seu tempo ansiando por uma fuga – por uma indefinida, distante “vida melhor” – ou então, zombando dessa fuga como sendo fútil e ilusória. Os únicos meios de escapar daquele buraco sórdido são a morte (por doença, assassinato ou suicídio) ou pelo crime (que leva a um outro confinamento na prisão). As principais vias de fuga da realidade brutal de suas vidas são o álcool e a diversão.
A última cena, na qual os inquilinos bebem saquê e cantam fazendo um coro cômico (muito popular no período Edo chamado de bakabayashi – literalmente, orquestra de “loucos”), termina abruptamente com a notícia do suicídio do ator. “Idiota”, resmunga o jogador num aparte para a platéia. “Ele fez isso para estragar nosso prazer”.
A Fortaleza Escondida / Kakushi No Toride San-Akunin / 1958 é um belo filme de aventuras picaresco, abordando um tema popular como se fosse um western oriental.
Durante uma guerra civil na Idade Média, a família do Príncipe Akizuki é quase inteiramente exterminada. A dedicação do General Rokurota (Toshiro Mifune) salva a jovem Princesa Yukihime (Misa Uehara), levando-a, juntamente com um punhado de ouro, para uma fortaleza escondida em uma região de difícil acesso. Dois vagabundos (Minoru Chiaki, Kamatari Fujiwara) encontram na estrada indícios da passagem da Princesa e a cobiça pelo prêmio da captura faz com que eles se juntem aos fugitivos.
Todo o filme consiste afinal em uma prova de iniciação diante da tarefa de salvar o tesouro dos Akizuki. A odisséia da princesa tem duas motivações: sobreviver e forjar um caráter de soberana, para refundir o clã. Após as várias peripécias pelas quais passou e prestes a ser executada pelos inimigos, a jovem Yukihime, desabafa: “Eu estou muito feliz. Uma felicidade que nunca tive no palácio. Eu vi o povo tal como ele é. Ví sua beleza e sua feiúra com meus próprios olhos”. É o tema – eminentemente Kurosawaniano – da sabedoria adquirida pela experiência.
As proezas formais de Kurosawa evidenciam-se desde os primeiros momentos do filme, quando assistimos a uma extraordinária cena de multidão. O diretor faz o espectador mergulhar numa coreografia assustadora, na qual os corpos são reduzidos a simples formigas enlouquecidas, atropelando tudo após sua passagem, para depois morrerem alguns metros adiante. A força visual do filme é reforçada pela utilização inspirada do CinemaScope (na versão japonesa Tohoscope), um processo ainda revolucionário na época.
No desenrolar da trama, encontramos em contraponto ao heroísmo guerreiro de Rokurota a delicadeza selvagem da princesa e a tolice divertida dos dois vagabundos, que serviram de modelo para George Lucas na criação de seus dois simpáticos robôs de Guerra nas Estrelas.
Com sua evidente riqueza plástica e ludismo, A Fortaleza Escondida é um entretenimento leve e acessível a qualquer público, que se insinuou entre os seus outros filmes mais sombrios e sofisticados. Como disse o cineasta numa entrevista: “Nada de teorias complicadas; só quis fazer um filme que fosse cem por cento divertido com suspense e humor… O relato foi se estruturando assim: cada manhã eu propunha uma situação que deixava o samurai e a princesa sem saída. Então, os outros três roteiristas faziam esforços desesperados para encontrarem uma saída para essa situação, como se fossem eles mesmos que deveriam escapar”.
Para inaugurar sua própria companhia produtora, Kurosawa quis fazer um filme que tivesse signficação social e escolheu como tema a corrupção nas altas camadas da sociedade japonesa. Embora nunca tivesse admitido isso, alguns críticos vislumbram em Homem Mau Dorme Bem / Warui Yatsu Hodo Yoku Nemuru / 1960, paralelos entre certos personagens do espetáculo cinematográfico e os da tragédia Hamlet de Shakespeare.
Pretendendo vingar a morte do pai, o jovem Koichi Nishi (Toshiro Mifune) assume outra identidade e se emprega numa poderosa empresa pública do setor da habitação, terminando por casar-se com Kieko (Kyoko Kagawa), filha aleijada de Iwabuchi (Masayauki Mori), o presidente da firma, responsável direto pelo crime. Enquanto isso, está em andamento um inquérito policial sobre corrupção, envolvendo uma construtora e a organização do governo. Os executivos ficam preocupados e um deles é forçado a cometer suicídio por seus superiores. Com o fim de reunir provas contra os criminosos, Nishi salva o contador Wada (Kamatari Fujiwara) e rapta o vice-presidente Moriyama (Takashi Shimura). Porém o sogro providencia seu assassínio e o de Wada, depois de convencer a filha de sua dignidade.
A muito celebrada cena de abertura do filme é a de um casamento, que pressagia os acontecimentos que vão se desenrolar. O enorme bolo nupcial chega e provoca exclamações de horror: é uma réplica de um prédio de escritórios, igual ao da corporação cujo presidente é o pai da noiva, mas tem uma flor vermelha, dependurada para fora da janela do sétimo andar, referência repulsiva a um empregado que se jogou dali. Não há dúvida de que esta cena nos faz lembrar da pantomima encomendada por Hamlet aos atores na cena II, Ato III da tragédia Shakespereana. Nishi está por trás do macabro bolo de noiva, um dos passos no seu plano para se infiltrar e destruir a corporação, que fizera seu pai se suicidar, pulando pela janela.
O filme segue seus esforços metódicos e o retrata como uma espécie de modelo irônico do estereotipado, super eficiente e devotado trabalhador japonês. O motivo ostensivo do noivo é a vingança pessoal, porém Kurosawa lhe dá um propósito social mais amplo, mostrando que ele quer também punir os homens que espoliam e esmagam as pessoas incapazes de resistir. Entretanto, Nishi está realmente apaixonado pela filha de seu inimigo e, por outro lado, não consegue chegar aos extremos de imoralidade que Kurosawa aponta como o modus operandi da corporação. Embora tivesse sido capaz de transformar um elemento importante da organização em um fantasma ambulante, Nishi hesita em cometer a violência de empurrar um outro pela janela. “Eu não odeio o suficiente”, ele lamenta.
No enredo de Céu e Inferno / Tengoku to Jigoku / 1963, Kingo Gondo (Toshiro Mifune), está prestes a dar um lance para obter o controle da fábrica de sapatos onde trabalha desde os dezesseis anos, quando recebe a noticia de que seu filho foi seqüestrado. O criminoso exige uma quantia exorbitante. Pouco depois, o menino aparece; o filho do motorista de Gondo é quem realmente fora seqüestrado. Gondo fica num dilema angustioso: atender a exigência pedida e perder a chance de realizar o seu sonho ou viver em paz com a sua consciência. Gondo decide pagar o resgate que deverá ser jogado pela janela de um trem super-rápido japonês. Depois disso, o Inspetor Tokuro (Tatsuya Nakadai) segue a pista do sequestrador. No final, descobre que ele é o estudante de medicina Ginji Takeuchi (Tsutomu Yamazaki). Na prisão, Genji fica frente a frente com Gondo e explode de cólera, de ódio, de impotência e denuncia a riqueza insultante do industrial. Gondo pergunta a Ginji: “Por que devemos nos odiar tanto?”. E vem a resposta: “Meu quarto era tão frio no inverno e tão quente no verão, eu não conseguia dormir. Daquele quarto minúsculo tua casa parecia um Paraíso. No momento em que olhei para ela, comecei a te odiar”.
Partindo de uma novela policial do norte-americano Ed McBain, Kurosawa procura analisar o mundo capitalista japonês e as diferenças sociais, o contraste entre a vida da alta burguesia (o “céu”, a mansão do próspero industrial) e a da favela (o “inferno”, onde mora o sequestrador), fazendo o seu julgamento moral; mas sem desprezar o dinamismo do thriller.
Podemos dividir o filme claramente em dois blocos distintos. Um primeiro segmento situado inteiramente entre quatro paredes da casa luxuosa de Gondo no alto de uma colina e o segundo, mais ambulante, mais nervoso, quando Kurosawa se consagra à descrição metódica da investigação conduzida pelos policiais no submundo de Yokohama. Ligando as duas partes, ocorre o episódio tenso e frenético no trem, filmado com câmera na mão e em tempo real, a seqüência mais fascinante do espetáculo.
Depois dos momentos difíceis que Kurosawa enfrentou após o fracasso comercial de Dodesukaden / Dodesukaden / 1970 (incluindo uma tentativa de suicido), ele aceitou o convite de Serguei Guerassimov para rodar na União Soviética o seu novo filme, Dersu Uzala / Derusu Usara / 1975, baseado em dois livros de viagem de Vladimir Arseniev, militar e geógrafo do exército do Tsar.
No curso de uma investigação topográfica nos confins entre a Sibéria e a China em 1902, um destacamento comandado pelo Capitão Arseniev (Yuri Solomin) encontra um velho caçador mongol, Dersu Uzala (Maksin Munzuk), que concorda em servir como guia da expedição. A curiosidade dos brancos transforma-se gradativamente em respeito pelo velho, que estabelece profunda relação de amizade com o capitão, mas recusa acompanhá-lo quando o destacamento deixa a floresta. Cinco anos depois, Arseniev retorna com outro destacamento e é com grande alegria que reencontra Dersu. Fica apreensivo ao descobrir que o amigo já não dispõe da mesma agilidade e consegue levá-lo para sua casa ao término da investigação. A tristeza do velho faz com que Arseniev o devolva à sua floresta, vindo a saber mais tarde que Dersu foi morto por um bandido que queria se apossar de sua arma.
Neste filme profundamente humanista, Kurosawa manifesta seu amor pelo homem e pela natureza. É um filme “ecológico”, que nos alerta contra a destruição de nosso meio natural. O diretor declarou: “A relação entre o ser humano e a natureza vai de mal a pior…Eu gostaria que o mundo inteiro conhecesse esse personagem russo- asiático que vive em harmonia com a natureza …Temos muito que aprender com Dersu”.
Com a ajuda da tela larga, da cor e de seu cinegrafista A. Nakai, o grande cineasta filmou paisagens admiráveis das estepes e das florestas, colocando um olhar cheio de sincera emoção sobre uma natureza ainda virgem, envolvida por radiante beleza.
Um crítico da revista Télérama, Xavier Lacavakerie, concluiu de maneira exemplar: “Após uma longa crise existencial, Kurosawa encontrou nesta fábula iniciática (autêntica) um exutório – e sem dúvida uma resposta para as suas próprias angústias. Uma grande serenidade neste filme-rio majestoso, no qual o homem parece ter encontrado um lugar correto na natureza e se ajusta aos elementos – mesmo quando eles são hostís e enfurecidos (a cena extraordinária da tempestade). Em plena conivência com a água que corre, com a relva que se dobra sob o vento e a neve imaculada atapetando o sol, o personagem de Dersu Uzala, encarnação da sabedoria e da fraternidade humana, é inesquecível”.
Lento, lírico, clássico, simples e tranqüilo, Dersu Uzala conquistou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 1976.
Tal como aconteceu com Dersu Uzala e Kagemusha (financiado pela Twentieth Century Fox e pela Toho graças à intervenção de George Lucas e Francis Ford Coppola), Kurosawa precisou contar com investimentos estrangeiros e, desta vez, foi Serge Silberman que, dando força para um projeto engavetado há oito anos, conseguiu interessar uma firma japonesa para dividir com sua produtora o vultoso orçamento de Ran / Ran / 1985.
O senhor feudal Hidetora Ichimonji (Tatsuya Nakadai), responsável por muitas maldades, envelhecido e cansado de contínuas batalhas, decide ceder o poder aos três filhos: Taro (Akira Terao), o primogênito, que tem direito às terras e força o pai a assinar um documento transmitindo-lhe toda a autoridade; Jiro (Jinpachi Nezu, que manda assassinar o irmão mais velho durante uma batalha e se apodera do feudo e Saburo (Ryu Daisuke) que, por sua franqueza na condenação das ações do pai, é banido para um domínio vizinho, juntamente com seu amigo Tongo (Masayuki Yui), fiel vassalo de Hidetora. Engendrando a luta pelo poder dentro da família, está a mulher de Taro, a vingativa e ambiciosa Kaeda (Mieko Harada) que, primeiro, instiga o marido a tomar a autoridade do pai e depois, quando Taro é morto, seduz Jiro para manter sua posição. Tanto a família de Kaeda quanto a de Sué (Yoshiko Miyazaki), esposa de Jiro, haviam sido exterminadas por Hidetaro. Mas Sue, ao contrário de Kaeda, de acordo com os princípios do budismo, havia perdoado Hidetora. O bobo da corte, Kyoma (interpretado pelo travesti Peter), Saburo e Tongo são os únicos que se mantêm fiéis ao velho; mas inutilmente. Enlouquecido pela fúria e carnificina que sua decisão gerou, Hidetora peregrina pelos campos destruídos de seu domínio.
Kurosawa localiza a ação no Japão do século XVI. Em vez de filhas, o senhor feudal tem filhos. Estes são codificados pelas cores: Taro é amarelo, Jiro é vermelho e Saburo é azul. Hidetaro divide seu reino entre eles e daí nasce uma intriga bastante complexa, feita de complôs, de traições, de mentiras e outros subterfúgios na linha das tragédias de Shakespeare; porém o diretor nos oferece uma visão pessoal e inédita da obra original.
Inspirando-se livremente no Rei Lear, com um notável desenho de produção feito em telas a óleo, locações na ilha de Kyushu, ao pé do monte Fuji, requisitados os castelos autênticos de Himeji e Humamoto, considerados tesouros nacionais do Japão, assistência de direção do veterano Inoshiro Honda, utilização magistral do som na seqüência do massacre, no qual Hidetora perde a razão, substituição da teleobjetiva, da lente zoom e da intensa movimentação de câmera por planos mais estáticos com maior profundidade de campo, o cineasta pintou, com uma orgia de cores espantosa, um afresco límpido e grandioso sobre a estupidez humana.
Kurosawa levou cinco anos pintando as story boards para Ran. E, perfeccionista como era, o filme apresenta acuradamente a sua visão. Ele nos apresenta cenas memoráveis salientando-se o ataque (parcialmente filmado sem os ruídos, ouvindo-se somente a música) ao Terceiro Castelo, com os tiros passando rente a Hidetora e ele depois saindo vagarosamente do castelo em chamas, a confrontação entre Kaeda e Jiro depois do assassinato de Taro, a reconciliação entre pai e filho e depois a morte de ambos.
A loucura é muito explorada em Ran através dos personagens, inclusive o bufão do rei que, ao longo da história, parodia por meio de canções os acontecimentos que assiste. Mas a gente percebe logo que, de fato, o bobo é o menos louco de todos. “O homem nasceu chorando”, diz ele. “Depois que ele chorar bastante ele morre”.
No final do filme, Kurosawa manda o seu recado, enunciado por um diálogo entre Kyoma e Tongo. Diante dos cadáveres de Hidetaro e Saburo, o bobo exclama, olhando para o Céu: “Existe algum Deus, algum Buda? Se você existir, ouça-me! Você é mau e cruel! Você está tão chateado aí em cima e tem que nos esmagar como formigas? Será que é divertido ver os homens chorarem?” Tongo grita para Kyoma: “Chega ! Não blasfeme. São os deuses que choram. Eles nos vêem matando uns aos outros, mais e mais desde que o mundo surgiu. Eles não podem nos salvar de nós mesmos”. Kyoma começa a chorar e Tongo continua: “Não chore! É assim que o mundo funciona. Os homens preferem tristeza em vez de alegria, sofrimento em vez da paz”.
Na cena derradeira, o jovem irmão de Sué, Tsurumaru (Takeshi Nimura), que Hidetora mandara cegar quando criança, fica sozinho no alto de uma montanha à beira de um abismo, tendo perdido o seu pergaminho com a efígie do Buda, uma espécie de amuleto protetor. Este símbolo do derradeiro abandono dos homens pelos Deuses, visto à distância sob a luz do crepúsculo, é a imagem mais desoladora do espetáculo.
Magnífico documentário! Parabéns!
Rosana/Brasilia
Bondade sua, Rosana. Obrigado.