Arquivo diários:agosto 14, 2010

HARRY BAUR

Harry Baur e Raimu eram os reis do teatro e do cinema francês durante todo o período entre as duas guerras mundiais, verdadeiros monstros sagrados, idolatrados pelo público. Eles tinham em comum uma força, um talento, uma personalidade inegável. Todos dois eram inimitáveis. Vou começar falando sobre Harry Baur e dedicarei um artigo a Raimu, logo em seguida.

.   Os pais de Harry Baur deixaram a Alsácia após a derrota de 1870, a fim de preservar a cidadania francesa, instalando-se em Paris, onde monsieur Baur continuou exercendo um pequeno comércio de relojoaria-joalheria. Harry, cujo verdadeiro nome era Henri-Marie, ainda estava no berço, quando uma desgraça se abateu sobre a família. Dois homens penetraram na loja e, sob ameaça de um revólver, roubaram todas as jóias.

Os Baur ficaram arruinados e Henri passou uma infância pobre. Seu pai faleceu quando ele tinha dez anos de idade e sua mãe não lhe devotava nenhuma afeição; mas ele teve a sorte de receber o carinho de uma religiosa, irmã Catherine, pertencente à Congregação das Filhas de Caridade da ordem de São Vicente de Paulo.

Sob pressão dos vizinhos, que estavam preocupados com o distanciamento da mãe com relação ao filho, Henri foi matriculado numa instituição religiosa, que se destinava à formação de futuros seminaristas. Sem ter vocação para ser padre, Henri fugiu da escola, mas depois estudou num colégio leigo, inscrevendo-se posteriormente nos cursos da Escola de Hidrografia da Marinha, de onde veio a ser expulso por causa de uma discussão com um dos professores.

O rapaz então decidiu ser ator e ingressou no Conservatório de Arte Dramática de Marselha, do qual saiu aos 19 anos, em 1899, amplamente recompensado com um prêmio de comédia, obtido ao interpretar uma cena do Avarento de Molière e outro de tragédia, com o monólogo do Cid de Corneille. Após ter cumprido a obrigação do serviço militar, Baur se aproximou novamente do teatro, desta vez como uma espécie de secretário do célebre ator Mounet-Sully e, com o tempo, ele conseguiu ingressar em várias companhias de teatro. Em 1907, Baur foi contratado pelo Teatro Antoine e, pela primeira vez, a crítica começou a falar sobre ele.

Vamos omitir informações sobre a carreira de Harry Baur nos palcos – que chegou ao auge nos doze primeiros anos posteriores à Primeira Guerra Mundial – e também sobre os filmes dos quais participou no período da cena muda entre 1909 e 1923, para chegarmos logo à sua estréia diante das telas depois do advento do som.

Baur começou no cinema falado na versão francesa do filme Le Cap Perdu / 1930, filmado na Inglaterra sob a direção de E. A. Dupont. Quando a filmagem chegava ao fim, ele recebeu uma ligação telefônica de um produtor, fazendo-o saber que Julien Duvivier desejava que ele fosse o intérprete de seu novo filme, Tragédia de um Homem Rico / David Golder / 1930.

Duvivier revelaria depois que a contratação de Baur suscitou algumas reticências por parte dos produtores, devido à fama que o ator tinha de temperamental, porém não houve nenhum incidente durante a filmagem do romance campeão de vendas de Irene Nemirovsky.

No enredo do filme, David Golder (Harry Baur), judeu polonês imensamente rico, vai se encontrar em Biarritz com sua esposa Gloria (Paule Andral) e sua filha Joyce (Jackie Monnier). David e Gloria se detestam. Ela o trai com um aventureiro, o conde de Hoyos (Gaston Jacquet). David idolatra Joyce, que finge ser uma filha devotada, mas só pensa em explorar o pai. David sofre uma crise de angina e, durante uma discussão com Gloria no hospital, esta lhe revela que Joyce é filha de Hoyos. Para se vingar, David abandona seus negócios e vai viver sozinho. Atendendo às súplicas de Joyce, faz uma transação lucrativa na Rússia para ajudá-la e morre solitário a bordo de um navio na viagem de volta.

Grande parte do êxito do espetáculo deve-se à mestria de Duvivier, mas a outra, não menos importante, ao talento do intérprete de David Golder. Foi o que acentuaram não somente os críticos, mas também eminentes personalidades literárias e artísticas, igualmente extasiadas pela performance do ator. Na sua magnífica biografia de Harry Baur (Pygmalion, 1995), de onde colhemos muitos dados para este artigo, Hervé Le Boterf cita várias opiniões a respeito do trabalho de Baur, das quais reproduzimos apenas a do poeta Jules Supervielle: “Harry Baur interpreta o papel particularmente difícil de David Golder com uma intensidade e uma riqueza que fazem dele uma das grandes figuras da tela”.

A cena mais contundente do filme – realizado praticamente segundo a técnica do cinema mudo, mas cumprindo inteligentemente as exigências da reprodução do som – é aquela em que Golder, gravemente enfermo, se defende das manobras de sua mulher, querendo lhe arrancar um testamento em seu favor. Quando Gloria se inclina sobre seu corpo e lhe diz cruelmente que Joyce não é sua filha, Golder estende o braço e aperta o pescoço da mulher com o seu colar de pérolas. É um momento terrível, no qual o ódio e a maldade se manifestam com uma intensidade impressionante.

Harry Baur fez 37 filmes no cinema sonoro (dos quais pude ver 19 – não conheço: Le Cap Perdu / 1930, Le Juif Polonais / 1930, Criminel / 1932, Os Três Mosqueteiros / Les Trois Mousquetaires / 1932, Ave de Rapina / Cette Vieille Canaille / 1933, Rotchild / 1933, Um Homem de Ouro / Un Homme em Or / 1934, Le Greluchon Délicat / 1934, Noites Moscovitas / Les Nuits Moscovites / 1934, Olhos Negros / Les Yeux Noirs / 1935, Tarass Boulba / Tarass Boulba / 1936, Paris / 1937, Nitchevo, Agonia do Submarino / Nitchevo / 1937, Nostalgia / Nostalgie / 1937, Les Secrets de la Mer Rouge / 1937, Ódio / Mollenard / 1938, Rasputin / La Tragédie Imperiale / 1938, O Patriota / Patriote / 1938. Vou falar somente sobre os filmes que eu vi.

Depois do sucesso de A Tragédia de um Homem Rico, Duvivier propôs a Baur, Les Cinq Gentlemen Maudits / 1931, que contava a aventura de cinco jovens em Tanger onde, após uma rixa por motivo fútil, um árabe predizia uma morte rápida e brutal para eles. O script não continha um papel correspondente à idade de Baur, mas somente cinco reservados para artistas jovens (René Lefèvre, Robert Le Vigan, Marc Dantzer, Jacques Erwin e Georges Péclet). Duvivier então incluiu um personagem suplementar para Baur, que podemos qualificar de episódico.

Um acontecimento impressionante ocorreu durante a filmagem. Baur e outros membros da equipe estavam sentados sobre algumas ruínas, comendo seus sanduíches, quando apareceu um mendigo que lançou uma maldição contra aqueles europeus, porque eles estavam profanando um cemitério muçulmano. No dia seguinte, alguns membros da equipe foram vitimados por uma doença desconhecida e outros sofreram do mesmo mal nos dias subseqüentes. Rose Grane, esposa de Baur, que estava em Oran no dia da dita profanação, também não escapou à vingança do mendigo que, conforme explicou um intérprete, era um religioso. O médico diagnosticou um caso de tifo e Rose veio a falecer. Sempre que podia, Baur visitava a esposa internada num hospital na Algéria. Suas ausências e as doenças sucessivas dos atores e técnicos atrazaram a filmagem dos exteriores que, prevista para três semanas, durou mais de três meses. Nos estúdios de Epinay, onde deveria prosseguir a produção, um imenso cenário foi destruído por um incêndio inexplicável e, posteriormente, três quartos dos negativos das tomadas feitas no Marrocos, foram estragados em virtude de uma pane de eletricidade ocorrida nos laboratórios de revelação. Finalmente, por ocasião da estréia do filme, a viúva de Luitz-Morat, realizador da versão muda da mesma história, moveu uma ação judicial para impedir a exibição do filme.

Apesar desta experiência desastrada, Duvivier se dedicou, poucos meses depois, a uma outra refilmagem, a de Poil de Carotte, que ele mesmo realizara em 1925.  No romance de Jules Renard, François Lepic (Robert Lynen), um menino de 12 anos de idade e cabelos ruivos, apelidado de Poil de Carotte, é detestado pela mãe (Catherine Fonteney), mulher tirânica que reserva seu carinho para o filho mais velho, Félix (Max Fromiot). François sofre profundamente por não ser amado. Seu pai parece indiferente, preocupado com as próximas eleições municipais. Após diversas tentativas, François resolve se suicidar enforcando-se no celeiro. Felizmente M. Lepic (Harry Baur) chega a tempo de salvá-lo. Pela primeira vez o pai tem uma conversa com o filho. A partir de então, Poil de Carotte terá um defensor contra sua mãe.

Este personagem de pai rabugento, que salvava do desespero um filho destinado a servir de bode expiatório para a sua mãe, ofereceu a Baur a oportunidade de fazer uma de suas grandes composições. O ator teve um cuidado meticuloso na elaboração de M. Lepic, a ponto de exigir quinze tomadas sucessivas, a fim de encontrar a entonação e os gestos mais exatos na cena patética em que Lepic procura ganhar a afeição de seu filho, um momento de grande emoção.

Como explicou Le Boterf, em Pega-Fogo (título em português da versão de 1932), Baur havia descoberto um reflexo de seu filho Jacques, morto três anos antes (Baur tinha mais um filho, Cecil Grane, e uma filha, Loëna). Ele ficou impressionado, desde seu primeiro encontro com Robert Lynen, por uma certa semelhança existente entre este e seu próprio filho, na idade de sua primeira comunhão. Esta cumplicidade sentimental, travada entre os intérpretes do pai Lepic e Poil de Carotte, contribuiu provavelmente para a qualidade emotiva do filme de Duvivier.

Não desejando se privar de seu astro fetiche, Julien Duvivier propôs a Harry Baur que ele encarnasse um personagem bem diferente, o do comissário Maigret em A Cabeça de um Homem / La Tête d’un Homme / 1932. O que interessava ao diretor nesta ilustração do romance de Georges Simenon era menos a intriga do que uma análise de caracteres motivada pelo confronto entre um comissário de polícia e um paranóico, devorado pela ambição de cometer um crime perfeito espetacular. No filme não há mistério, mas somente oposição, a luta entre dois temperamentos. Trata-se, enfim, de um estudo psicológico e, graças à presença de dois grandes atores – Baur no papel de Maigret e Valéry Inkijinoff no papel do assassino Radek -, Duvivier conseguiu reconstituir com perfeição esse duelo entre duas personalidades fortes.

O próximo de filme de Harry Baur, que eu vi e gostei, foi Os Miseráveis / Les Misérables / 1934, dirigido por Raymond Bernard, no qual ele encontrou o papel mais marcante de sua carreira. Apesar da compressão da intriga, o grande afresco romântico e social de Victor Hugo foi levado à tela com muita fidelidade. A interpretação de Harry Baur, que está sublime em todas as encarnações do personagem – de Jean Valjean a Fauchelevent e Madeleine, aos quais ele ainda acrescentou a figura episódica de Champmathieu – jamais foi superada por outro ator. Também admiráveis foram os trabalhos de Charles Vanel, como o inflexível Javert; Florelle, assumindo os traços luminosos de Fantine; Charles Dullin e Marquerite Moreno, formando uma dupla dissimulada e sarcástica nos papéis de Thénardier e senhora, Jean Servais e Josseline Gaël, compondo com graça juvenil o par romântico de Marius e Cosette, sem esquecermos de Henry Krauss (Bispo Myriel), Orane Demazis (Eponine), Robert Vidalin (Enjolras), Emile Genevois (Gavroche), Max Dearly (Gillenormand) e a pequenina Gaby Triquet (Cosette menina).

Abro um parênteses para dizer que lamento muito não ter visto os filmes do chamado “ciclo eslavo” de Baur, propulsionado pelo êxito de Noites Moscovitas. Inspirado no romance de Pierre Benoit, o enredo focaliza um mercador de trigo, Piotr Brioukow (Harry Baur) e um oficial do exército de Nicolau II acusado injustamente de traição (Pierre Richard-Willm), que estão apaixonados por uma jovem aristocrata (Annabella). No final, o comerciante grosseiro e beberrão testemunha em favor de seu rival, salvando-o da execução e se sacrifica, para que o casal possa viver alguns dias felizes antes da Revolução de Outubro. Depois do sucesso deste filme, os produtores passaram a oferecer ao ator muitos papéis de russos e assim sucederam-se – em alternância com outros filmes não relacionados com a Rússia – Olhos Negros, Tarass Boulba, Rasputin e O Patriota, nos quais Baur era visto pela ordem como Ivan Ivanovitch Petroff, Tarass Boulba, Rasputin e o Tsar Paulo I.

Segundo Le Boterf, a composição de Baur como Tarass Boulba foi uma das mais prodigiosas de sua carreira. Beberrão, colérico, violento e subitamente preocupado com os filhos, com sua cabeça raspada e seus enormes bigodes, ele traçou um retrato ao mesmo tempo feroz e pungente do personagem de Nicolas Gogol. Baur soube extrair efeitos maravilhosos das cenas principais: a execução de seu filho André (Jean-Pierre Aumont), os regabofes e a dança cossaca no acampamento e sobretudo a morte inesquecível do grande líder ao pé de uma árvore cuja folhagem abrigava sua agonia. Como escreveu seu notável biógrafo, “Nunca, depois de Os Miseráveis, Harry Baur havia usufruido de um triunfo tão grande na tela”.

Entre esses intermédios de atmosfera eslava, Baur encontrou tempo para atuar em outros filmes, entre os quais destaco: Assassino sem Culpa / Crime et Châtiment / 1935 e Um Grande Amor de Beethoven / Un Grand Amour de Beethoven / 1937.

Em Assassino sem Culpa, Pierre Chenal compreendeu que era difícil reproduzir a significação metafísica da obra literária e preferiu fazer uma adaptação simplesmente dramática do romance de Dostoievski, usando a iluminação e os enquadramentos expressionistas, para criar uma atmosfera russa estilizada, carregada de tristeza, sordidez e miséria. Porém o ponto alto do filme é a confrontação psicológica em um jogo de gato e rato, entre o juiz astuto tentando obter uma confissão do criminoso e o estudante atormentado que, no fundo, deseja se liberar do seu segredo.

Baur aceitou o papel do comissário Porfírio, porque teria oportunidade de contracenar com seu colega Pierre Blanchar, encarregado de personificar o estudante Raskolnikov, num duelo artístico estimulante. A interpretação de Pierre Blanchar com aquele olhar alucinado, a dicção estranha, os risos nervosos, contrasta com a atuação mais sutil e contida de Harry Baur, ambos magníficos atores. Mas foi Blanchar, e não o seu parceiro, que obteve o prêmio Volpi de Melhor Ator na Mostra Internacional de Veneza em 1935. Entretanto, Baur não manifestou nenhum despeito e consentiu que seu nome figurasse em segundo lugar nos letreiros e nos cartazes do filme. “Por causa do papel. Por causa de Pierre Blanchar”, declarou ele com fidalguia.

Em O Grande Amor de Beethoven, Abel Gance preferiu evocar – com seu lirismo desmesurado – o período mais doloroso vivido por Beethoven, que coincidiu com a constatação de sua surdez total, seus desgostos sentimentais e a expansão do seu gênio artístico, a fim de dar um máximo de intensidade dramática ao espetáculo.

O grande amor é o de Beethoven (Harry Baur) por Giulietta Guicciardi (Jany Holt), sem compreender que ela apenas lhe dedica amizade e admiração. Giulietta se casa com o conde Gallenberg (Jean Debucourt). Ao receber esta notícia e perceber que está totalmente surdo, Beethoven cai em depressão. O compositor se retira para o velho moinho de Heiligenstadt, onde permanece sozinho por algum tempo. Retornando a Viena, Beethoven recebe em sua casa uma mulher doce e apaixonada, Thérèse de Brunswick (Annie Ducaux), a prima de Giulietta. Esta acaba reconhecendo seu erro ao se casar com Gallenberg e Beethoven a perdoa, escrevendo a famosa carta à “amada imortal”. Thérèse pensa que esta declaração de amor se refere a ela e Beethoven não ousa dissipar o engano. Porém Thérèse depois percebe que a sonata “Appassionata” é dedicada à memória de Giulietta e se resigna a ser apenas uma amiga de Beethoven. O grande compositor morre durante uma tempestade, em presença de Giulietta, que viera para lhe dar o último adeus. Na mesma noite, um concerto, ao qual assiste a amiga fiel, Thérèse de Brusnwick, consagra o gênio musical de Beethoven.

Gance estabelece uma simbiose perfeita entre imagem e música, por exemplo, na declaração de amor ao som da Sonata ao Luar, na surpreendente execução da Nona Sinfonia sem trilha sonora para evocar o mundo dos surdos, na Sinfonia Pastoral ajudando a compreender o mecanismo da criação. Baur levou muito a sério a composição do personagem. Bom músico que era, pôs-se a executar as sonatas do compositor no piano, em cujo teclado não tocava desde o falecimento de seu filho Jacques, e freqüentou numerosos concertos sozinho ou na companhia de Rika Radifé, que ele havia esposado alguns meses antes. Baur ficou mesmo deslumbrado com a oportunidade de ser Beethoven na tela, então disse: “É uma recompensa na carreira de um ator ver seu nome unido à existência mais bela, mais comovente, depois da vida do Cristo. Este homem crucificado pela música, que ele não podia ouvir”.

Outros papéis que Harry Baur representou e que não me saem da lembrança: o tetrarca Herodes em Golgotha / Golgotha / 1935, o imperador Rodolfo II em Golem, o Monstro de Barro / Le Golem / 1936, o banqueiro Jacques Brachart em Sansão / Samson / 1936, o construtor Bourron em Les Hommes Nouveaux / 1937, o monge regente do coro infantil em Um Carnet de Baile / Un Carnet de Bal / 1937, César Sarati, o ex-estivador quase incestuoso que impõe sua lei nas docas de Argel, em Sarati le Terrible / 1938 (no qual teve ao seu lado Rika Radifé), o médico colonial Dr.Bourdet em L’Homme du Niger / 1939, o magistrado Haudecoeur em Le Président Haudecoeur / 1939 (contracenando com seu filho Cecil Grane),  o avarento esperto e mesquinho em Volpone, o Demônio de Paris / Volpone / 1940, o fabricante de mapas-múndi Père Cornusse em L’Assassinat du Père Noel / 1941, o quinquagenário Lacalade que procura os filhos nascidos de suas relações na juventude em Péchés de Jeunesse / 1941 e o maestro Stéphane Melchior em Sinfonie eines Lebens / 1942

Durante a Ocupação, após ter atuado como astro de dois filmes (L’Assassinat du Père Noel e Péchés de Jeunesse) produzidos pela Continental, a companhia destinada a produzir na França filmes com capital alemão e mão de obra francesa, dirigida por Alfred Greven, Baur tornou-se, no plano artístico, um símbolo da colaboração franco-alemã. Em diversas ocasiões ele foi visto congratulando-se com artistas do cinema nazista de passagem por Paris e se deixou fotografar com eles. Baur não recusou o convite de Greven para participar de um jantar oferecido pela Continental em homenagem a Zarah Leander, a famosa estrela dos estúdios alemães nem da recepção organizada no Maxim’s para acolher o grande ator germânico, Heinrich George. Baur tentou escapar das garras da Continental e caiu em outras, muito mais comprometedoras, da Tobis, cuja sede não era em Paris, mas no coração mesmo do Terceiro Reich. Ele assinou um contrato de seis meses com a Tobis, para fazer um filme cem por cento alemão, Sinfonie eines Lebens, que, por um cachê de seis milhões de francos, faria dele o primeiro astro trabalhando nos estúdios nazistas depois da derrota da França e serviria assim como prelúdio a uma política de trocas cinematográficas entre Paris e Berlim.

Depois que o filme alemão terminou, Baur retornou a Paris tranqüilamente. Pouco depois, no dia 30 de maio de 1942, sua esposa e ele foram presos pela polícia alemã e transferidos respectivamente para a prisão de la Santé e du Cherche-Midi. Rika foi libertada após cento e quinze dias de detenção. Seu marido foi impedido de receber visitas, correspondência e até remédios. Ele foi solto em 19 de setembro de 1942, em condições físicas lamentáveis.

O aprisionamento do ator suscitou diversas interpretações (entre elas a de que era membro da Resistência ou um agente inglês, que teria favorecido a evasão de vários prisioneiros), mas segundo sua viúva declarou após a Libertação, ele foi motivado por uma denúncia feita por um certo Edouard B…, ator obscuro que Baur conhecera na sua juventude. O conteúdo do bilhete do delator era sucinto: “Harry Baur é judeu, casado com uma judia, sua filha se casou com um judeu argelino, seus filhos foram educados na religião judaica”. Baur, que já vinha sendo apontado como judeu e franco-maçom pela imprensa colaboracionista e anti-semita, foi acusado de ter obtido um certificado falso de ascendência ariana.

Existem duas hipóteses para a sua libertação: ou os alemães o soltaram porque constataram que ele não era judeu ou o deixaram ir para casa, bastante enfraquecido, para dar ao seu fim próximo a aparência de uma “morte natural”.

Baur sempre afirmara que era “um velho católico” e morreu aos 63 anos de idade, em 8 de abril de 1943, assistido pelo padre que o visitava cotidianamente nos seus dias de agonia. O funeral ocorreu na igreja Saint-Philippe-du-Roule e seu corpo, com um rosário atado nos seus dedos, foi enterrado no cemitério Saint-Vincent em Montmartre.

Quanto à Rika Radifé, ela se dizia muçulmana e, após a morte de Bauer, teria se convertido ao catolicismo, conquistada pela piedade do sacerdote que trouxera conforto espiritual para seu marido. Rika aparentemente, não foi mais incomodada pela Gestapo durante os últimos anos da ocupação. Ela veio a falecer em 1983, após ter dirigido, durante trinta anos, o Thêatre des Mathurins em Paris.