Arquivo mensais:agosto 2010

RAIMU

Raimu, juntamente com Harry Baur, foi um dos monstros sagrados do teatro e do cinema francês nos anos 30.

Seu nome verdadeiro era Jules Auguste César Muraire e ele nasceu em Toulon no dia 18 de dezembro de 1883, filho do tapeceiro Mucius Scaevola Joseph Marie Antoine Muraire e Élisabeth Gouzian. Quando criança, Jules Auguste sentia muito prazer em interpretar os heróis, cujas aventuras sua mãe lhe contava, transformando-se em mosqueteiro, rei ou corsário com algumas peças de ouro falso e retalhos de cortinas rasgadas.

Como o menino não gostava de estudar, seu pai resolveu que ele ia trabalhar no seu ateliê. Porém Jules não queria se tornar tapeceiro. Ele sabia muito bem o que queria fazer na vida. Ele queria ser Mayol, ou seja, Félix Mayol, o célebre chansonnier, seu conterrâneo. Entretanto, um detalhe o inquietava. Félix Mayol tinha um trunfo: uma voz maravilhosa. Este não era o seu caso. Mas ele já sabia como superar essa desvantagem: seria cantor cômico.

Alguns meses atrás Polin, o grande Polin, chegara a Toulon, para fazer uma apresentação excepcional de gala. Os Muraire não podiam perder o acontecimento. A família inteira compareceu: Papai, Mamãe, Valentin (o irmão de Jules) e Jules. Foi uma noite inesquecível!

Polin era então a maior vedeta do music hall e da canção francesa, especializado no gênero comique troupier, isto é, um comediante-cantor vestido de recruta em comédias evocando os dias de caserna. No Cassino de Toulon, Polin, “em carne e osso”, cantou seus maiores sucessos e, ao terminar a sessão, a platéia aplaudiu de pé seu ídolo por mais de dez minutos. Jules jamais esqueceria este espetáculo. Sua decisão estava tomada. Ele seguiria a carreira de Mayol, imitando Polin.

Jules começou seu itinerário de comique troupier exibindo-se diante do público em bistrôs e tavernas nos subúrdios de sua cidade natal e arredores, até que conseguiu ser contratado pelo Cassino de Toulon, adotando na ocasião o pseudônimo de Raimut (com um t).

Em janeiro de 1909, o jovem Jules Muraire, mais do que nunca desejoso de fazer carreira nos palcos, vai para Marselha, onde havia cerca de quarenta estabelecimentos de espetáculos consagrados ao teatro de variedades e à canção, entre eles o Alhambra. Para enfrentar esta nova fase de sua trajetória cênica, Jules mudou de pseudônimo, intitulando-se Rallum. Porém Rallum não estreou bem no Alhambra e o proprietário da sala, Paulus (que havia sido um ídolo do público nos anos 1880-90), com pena do rapaz, aproveitou-o como ponto, aquele auxiliar de cena que, fora da vista do público, vai recordando aos atores em voz baixa suas respectivas falas.

Um dia, a oportunidade de voltar à cena como ator lhe surgiu quando, por força das circunstâncias, teve que substituir o principal ator da companhia, Fortuné Aîné. A platéia aplaudiu Rallum entusiasticamente e ele ficou feliz em saber que havia escolhido a profissão certa.

Neste momento, o destino interveio. Seu pai, viciado no jogo, morreu coberto de dívidas. Todos os seus bens foram hipotecados e, sob pressão dos credores, tiveram que ser vendidos. Seu irmão Valentin acrescentou que seus próprios negócios iam de mal a pior e ele não podia socorrer a mãe. Jules é que teria de cuidar dela. O jovem foi trabalhar como crupiê e depois, tal como o irmão o fizera, estabeleceu-se como comerciante de sal numa loja em Marselha.

Jules Muraire, comerciante, não quis mais ouvir falar de arte mas, muitas vezes no fim do dia, ia beber um aperitivo no Petit Noailles, onde se reuniam os artistas. Certo dia propuseram-lhe uma participação num espetáculo de caridade. Os amigos insistiram e ele aceitou. Jules cantou quatro canções e foi um triunfo. Decididamente, ele não podia viver sem aquele sentimento, sem aquela emoção.

O dono do Palais de Cristal veio aos bastidores para lhe oferecer um contrato. Peça após peça seu talento se afirma e ele muda mais uma vez o pseudônimo para Raimu (sem o t). Seu êxito é enorme, sua notoriedade cresce. Falam dele em toda a região. Certo dia, o famoso Félix Mayol vai ao Palais de Cristal para cumprimentá-lo e acaba empregando-o no seu próprio teatro parisiense o Concert Mayol.  Jules estréia em 1910.

No ano seguinte, Raimu já está no principal music-hall de Paris, La Cigale de Gaston Flateau. O formidável ator, glória do teatro francês, Lucien Guitry, vai assistir ao espetáculo. Guitry aplaude Raimu longamente e deixa um recado no seu camarim, marcando um encontro no teatro Sarah-Bernhardt, onde se apresentava. A primeira pergunta que Guitry faz a Raimu: “Eu gostaria de saber, Monsieur Raimu, o que o senhor faz no music-hall?”. Resposta de Raimu: “Mas, Monsieur…Mestre. Que outra coisa o senhor queria que eu fizesse?”. Guitry lhe diz: “O teatro, meu caro. O teatro. Você devia representar no teatro…”.

No outono, o Folies-Bergère “rouba” Raimu do La Cigale, dobrando seu salário. Aos trinta anos, Raimu tinha todo o futuro pela frente. Mas só até o verão. No dia dois de agosto, de 1914, a França declara guerra à Alemanha e a Áustria-Hungria. Como soldado de segunda classe, Raimu parte para Orange, a fim de se juntar ao seu regimento. Em março de 1915, ele foi desligado do exército por motivo de doença.

De volta a Paris, o artista prosseguiu sua carreira alternando teatro de comédia com teatro de revista (vg. Monsieur chasse de Georges Feydeau; Plus ça change, ao lado de sua amante, a linda Spinelly; Faisons un rêve de Sacha Guitry; L’École des Cocottes de Armont e Gerbidon, um sucesso estrondoso; Le Roi de Flers et Caillavet; Édith de Nantes de Yves Mirande; L’Arlesienne de Alphonse Daudet; Bonjour Paris! apoiado pela famosa Mistinguett), até que ocorreu o seu encontro com Marcel Pagnol em Marius e, como consequência do êxito deste espetáculo, a sua introdução no cinema falado.

Raimu, que havia participado (como Rallum) em sete filmes mudos entre 1912 e 1917, fez 46 filmes sonoros, dos quais eu vi 22. Não conheço: Blanc et le Noir / 1931, Mam’zelle Nitouche / 1931, La Petire Chocolatière / 1932, Charlemagne / 1933, J’ai une Idée / 1934, Minuit, Place Pigalle / 1934, L’École des Cocottes / 1935, Le Secret de Polichinelle / 1936, Os Reis também Amam / Le Roi / 1936, Les Jumeaux de Brighton / 1936; Nada a Declarar / Vous n’avez rien a Déclarer? / 1937, A Casta Suzana / La Chaste Suzanne / 1937, Les Rois du Sport / 1937, Le Héros de la Marne / 1938, Noite de Farra / Nuit de Coco / 1939, Monsieur Brotonneau / 1939, Viciada / Dernière Jeunesse / 1939, L’Homme qui cherche la Verité / 1940, L’Arlesienne / 1942, Le Bienfaiteur / 1942, Les Petits Riens / 1942, Les Gueux du Paradis / 1946, O Eterno Marido / L’Homme au Chapeau Rond / 1946.

Entre os filmes de Raimu que conhecí, vou destacar alguns que muito me agradam, a começar por Marius, primeiro exemplar da trilogia Marius-Fanny-César, que revelou o mundo de Pagnol com sua humanidade simples e calorosa, seu folclore marselhês, imposto na tela pelo texto e por atores maravilhosos.

No velho porto de Marselha, o Bar de la Marine é mantido por César (Raimu), um bom sujeito, mas com cóleras pitorescas, que ali vive com seu filho Marius (Pierre Fresnay). Honorine (Alida Rouffe), vizinha e comerciante, que tem uma filha, Fanny (Orane Demazis), apaixonada por Marius. Porém o rapaz só sonha como o mar e com os grandes veleiros, que poderão levá-lo para lugares longínquos. Panisse (Fernand Charpin) , viúvo e rico, embora bem mais velho que Fanny, quer se casar com ela. Fanny torna-se amante de Marius, porém constata a amargura dele, contrariado nos seus projetos de evasão, e o incita a se engajar como marinheiro em um navio que está partindo.

Como observou Jacques Siclier, o filme põe em jogo situações e sentimentos, que poderíamos qualificar de melodramáticos, se Pagnol não possuísse a arte para humanizá-los, torná-los naturais. Nos filmes deste cineasta só conta a verdade humana e a interpretação de atores. A cena na qual Raimu tenta trapacear no jogo de cartas, dizendo para seu parceiro “tu me partes o coração”, é apenas um dos vários momentos antológicos do espetáculo, filmado em exteriores bastante fotogênicos.

Marius / 1931 e Fanny / 1932 foram respectivamente realizados por Alexander Korda e Marc Allégret; mas o próprio Pagnol completou com César / 1936 a “Trilogia Marselhesa”, comédias de costume impregnadas de muito calor humano, que asseguraram a glória de seu autor e de seus intérpretes (Raimu-César, Pierre Fresnay-Marius, Orane Demazis-Fanny, Fernand Charpin-Panisse).

Outro filme favorito é A Mulher do Padeiro / La Femme du Boulanger / 1938. Aimable Castanet (Raimu), o novo padeiro da aldeia de Sainte-Cécile, na Provença, não tem rival para fazer um bom pão branco. Sua mulher, Aurélie (Ginette Leclerc), foge com Dominique (Charles Moulin), o pastor de ovelhas do marquês de Monelles (Fernand Charpin). O infortúnio do padeiro a princípio diverte a comunidade, porém Aimable não tem mais ânimo para o trabalho. Ele se embriaga, abandona o forno e quer se enforcar. Os aldeões então se organizam para trazer a infiel Aurélie de volta.

Esta crônica camponesa, tão rica de verdade humana quanto os outros filmes provençais de Pagnol, é um estudo preciso das reações que a infelicidade provoca em um homem simples de coração. O filme trata também da solidariedade de um grupo, que estava oculta e se manifesta em razão do desespero pela inação do padeiro.Toda a intriga gravita em torno de Raimu e ele nos proporciona uma de suas melhores composições: vejam a longa cena de embriaguez na qual ele ri, canta em italiano, diz obcenidades, se afoga em lágrimas e adormece, evocando com lirismo o odor dos braços de sua mulher. Fica-se com vontade de chorar quando Aimable, sem ousar se dirigir a Aurélie no retorno de sua fuga, expressa toda a sua dor, dirigindo-se à gata, que também fugira.

Em O Homem que vivia duas Vidas / L’ Êtrange Monsieur Victor / 1938 de Jean Grémillon e Les Inconnus dans la Maison / 1941 de Henri Decoin, Raimu teve mais uma oportunidade de oferecer aos espectadores duas brilhantes atuações.

O Homem que viveu duas Vidas se passa em Toulon. Victor Agardanne (Raimu) leva uma vida dupla: a de um comerciante honesto e respeitado durante o dia, que à noite se torna chefe de uma quadrilha de ladrões. Vítima de uma tentativa de chantagem, Victor mata um de seus cúmplices com um instrumento cortante pertencente a seu vizinho, o sapateiro Bastien Robineau (Pierre Blanchar). Este é preso e condenado. Sete anos depois, Bastien foge da prisão e se refugia na casa de Victor, que lhe oferece ajuda, até ser desmascarado e preso pela polícia sob o olhar incrédulo de toda a vizinhança.

O aspecto mais interessante da história é o relacionamento psicológico entre Monsieur Victor e seu vizinho Bastien. Victor é gordo, próspero, bonachão, casado com a encantadora Madeleine (Madeleine Renaud). Bastien é magro, pobre, taciturno, ridicularizado por uma esposa insatisfeita, Adrienne (Viviane Romance), que o engana. Victor comete um crime e deixa que Bastien leve a culpa. Ao retornar, Bastien é recolhido e escondido por Victor e se apaixona por sua mulher. O responsável por sua infelicidade lhe aparece como seu benfeitor e é ele que se sente culpado de traí-lo no mesmo lugar que o “honrado” comerciante lhe deu asilo. Raimu está magnífico, encarnando através da personagem de Victor a ambivalência própria da natureza humana.

Na intriga de Les Inconnus dans la Maison o advogado Hector Loursat (Raimu) tornou-se alcoólatra, depois que sua mulher o abandonou há dezoito anos, deixando-o com uma filha, Nicole (Juliete Faber), da qual ele nunca se ocupou. Um dia, após ter ouvido um tiro, ele encontra na sua casa um cadáver. Durante o inquérito, Loursat fica sabendo que Nicole anda com um grupo de rapazes que, para espantar o tédio, haviam fundado um “clube de roubos”. Émile Manu (André Reybaz), namorado de Nicole, é acusado de homicídio, porque a vítima era um bandido, que extorquia dinheiro do grupo. Loursat sai de sua habitual letargia para defender Émile e faz, durante o julgamento, o processo de uma sociedade.

A primeira parte do filme evoca com vigor o ambiente da pequena cidade e os caracteres dos personagens. A segunda é dedicada à atuação do advogado alcoólatra e decadente, até então confinado às suas lembranças e à sua amargura. Ele não perdeu sua lucidez e a usa para defender um jovem acusado de assassinato. Raimu, com cara de bêbado, está quase dormindo no tribunal, onde as testemunhas oprimem seu cliente. Finalmente ele desperta e explode, dizendo algumas verdades duras de serem digeridas pelos burgueses provincianos, que o escutam, com temor. Seu longo discurso – com aquela voz tonitroante inconfundível – ofereceu ao grande ator a chance de mostrar seu talento extraordinário.

Raimu era, sobretudo, um ator instintivo e a sua imensa popularidade explica-se certamente pelo fato de que, através de sua personalidade ora bonachã ora irascível, todo indivíduo identificava-se facilmente com ele. René Clair, que o admirava e chegou a convidá-lo para trabalhar em O Silêncio é de Ouro / Le Silence est d’or / 1947, via nele “uma força viva, que os piores papéis não conseguiam destruir”.

Outros personagens que Raimu representou e que não me saem da memória são: o Capitão Hurluret em Les Gaietés de l’Esquadron; o escroque Gédéon Tafard em Théodore et Cie / 1933; o escroque Gédéon Tafard em Ces Messieurs de la Santé / 1933; o caçador de leões fanfarrão e mentiroso em Tartarin em Tartarin de Tarascon / 1934; o marido traído em  Vamos Sonhar / Faisons um Rêve 1935; Samplan em  Gaspard de Besse / 1935; o rico industrial marselhês, que comprou a última pérola em As Pérolas da Coroa / Les Perles de la Couronnne / 1937; o professor de ginástica em Le Fauteuil 47 / 1937; o jurado Camille Morestan, em Mulher Fatal / Gribouille / 1937; o prefeito François Patusset, que se casa a si mesmo em Um Carnet de Baile / Un Carnet de Bal / 1937; Legendre em Os Novos Ricos / Les Nouveaux Riches / 1938; Pascal Amoretti em La Fille du Puisatier / 1941; o Padre Bolène em Le Duel / 1939; o Cura des Baux em Parade em Sept Nuits / 1941; o ex-professor de música que se torna mendigo em Monsieur la Souris; Hyacinthe, o ex-militar do exército de Napoleão conhecido como Chabert em A Grande Perfídia / Le Colonel Chabert /1942; Tio Hector  em França Eterna / Untel père et fils / 1945.

No final de novembro de 1937, Raimu é agraciado com a Légion d’honneur. Era raríssimo um ator receber esta condecoração. Até aquela data, somente três foram honrados: Cécile Sorel, Le Bargy e Dranem (pela sua dedicação às causas humanitárias). Raimu foi o quarto.

Em 1943, Raimu, apadrinhado por Marie Bell, entra para a Comédie-Française, o ponto alto de sua carreira, e interpreta, entre outras peças clássicas, Le Bourgeois Gentilhome e Le Malade Imaginaire de Molière. Mas não se afastou das câmeras.

O grande ator despediu-se dos fãs de cinema somente em 1946 e faleceu em 20 de dezembro do mesmo ano em Neuilly-sur-Seine, aos 63 anos (coincidência, com a mesma idade que morreu Harry Baur), em virtude de uma crise cardíaca, provocada por uma dose de anestesia, que ele não suportou, após uma operação cirúrgica benigna na perna, realizada por causa de um acidente automobilístico.

Sua mulher Esther e a filha desta, Paulette, organizaram o seu funeral, que foi assistido por milhares de pessoas. Nesta ocasião, Marcel Pagnol declarou: “Não se pode fazer um discurso sobre o túmulo de um pai, um irmão ou de um filho. Tu fostes os três ao mesmo tempo: eu não falarei sobre seu túmulo”.

Vou terminar este artigo, reproduzindo o texto final do excelente livro de Raymond Castans, L’Impossible Monsieur Raimu (Fallois, 1999), do qual extraímos muitas informações.

No decorrer da semana seguinte ao enterro de seu amigo, Marcel Pagnol é procurado por um americano bem alto, que lhe diz: “Estou chegando dos Estados Unidos e desejo saber o endereço do ator Rai-Miou. Eu vi várias vezes o seu filme La Femme du Boulanger e gostaria de ter a honra de cumprimentá-lo.

___Infelizmente não será possível. Ele faleceu na semana passada”.

Diante destas palavras, o rosto do visitante entristeceu-se e ele ficou muito comovido: “Não posso acreditar, murmurou”.

Pagnol lhe conta o que se passou. O desconhecido queria saber de tudo. Finalmente, ele se levanta, olha longamenta para um retrato-fotográfico de Raimu e depois diz para Pagnol: “É uma grande infelicidade para a nossa arte, disse ele, era o maior ator do mundo”.

Neste instante, o visitante percebe que Pagnol não o reconhecera. Então, ele se apresenta: “Eu sou Orson Welles”.

HARRY BAUR

Harry Baur e Raimu eram os reis do teatro e do cinema francês durante todo o período entre as duas guerras mundiais, verdadeiros monstros sagrados, idolatrados pelo público. Eles tinham em comum uma força, um talento, uma personalidade inegável. Todos dois eram inimitáveis. Vou começar falando sobre Harry Baur e dedicarei um artigo a Raimu, logo em seguida.

.   Os pais de Harry Baur deixaram a Alsácia após a derrota de 1870, a fim de preservar a cidadania francesa, instalando-se em Paris, onde monsieur Baur continuou exercendo um pequeno comércio de relojoaria-joalheria. Harry, cujo verdadeiro nome era Henri-Marie, ainda estava no berço, quando uma desgraça se abateu sobre a família. Dois homens penetraram na loja e, sob ameaça de um revólver, roubaram todas as jóias.

Os Baur ficaram arruinados e Henri passou uma infância pobre. Seu pai faleceu quando ele tinha dez anos de idade e sua mãe não lhe devotava nenhuma afeição; mas ele teve a sorte de receber o carinho de uma religiosa, irmã Catherine, pertencente à Congregação das Filhas de Caridade da ordem de São Vicente de Paulo.

Sob pressão dos vizinhos, que estavam preocupados com o distanciamento da mãe com relação ao filho, Henri foi matriculado numa instituição religiosa, que se destinava à formação de futuros seminaristas. Sem ter vocação para ser padre, Henri fugiu da escola, mas depois estudou num colégio leigo, inscrevendo-se posteriormente nos cursos da Escola de Hidrografia da Marinha, de onde veio a ser expulso por causa de uma discussão com um dos professores.

O rapaz então decidiu ser ator e ingressou no Conservatório de Arte Dramática de Marselha, do qual saiu aos 19 anos, em 1899, amplamente recompensado com um prêmio de comédia, obtido ao interpretar uma cena do Avarento de Molière e outro de tragédia, com o monólogo do Cid de Corneille. Após ter cumprido a obrigação do serviço militar, Baur se aproximou novamente do teatro, desta vez como uma espécie de secretário do célebre ator Mounet-Sully e, com o tempo, ele conseguiu ingressar em várias companhias de teatro. Em 1907, Baur foi contratado pelo Teatro Antoine e, pela primeira vez, a crítica começou a falar sobre ele.

Vamos omitir informações sobre a carreira de Harry Baur nos palcos – que chegou ao auge nos doze primeiros anos posteriores à Primeira Guerra Mundial – e também sobre os filmes dos quais participou no período da cena muda entre 1909 e 1923, para chegarmos logo à sua estréia diante das telas depois do advento do som.

Baur começou no cinema falado na versão francesa do filme Le Cap Perdu / 1930, filmado na Inglaterra sob a direção de E. A. Dupont. Quando a filmagem chegava ao fim, ele recebeu uma ligação telefônica de um produtor, fazendo-o saber que Julien Duvivier desejava que ele fosse o intérprete de seu novo filme, Tragédia de um Homem Rico / David Golder / 1930.

Duvivier revelaria depois que a contratação de Baur suscitou algumas reticências por parte dos produtores, devido à fama que o ator tinha de temperamental, porém não houve nenhum incidente durante a filmagem do romance campeão de vendas de Irene Nemirovsky.

No enredo do filme, David Golder (Harry Baur), judeu polonês imensamente rico, vai se encontrar em Biarritz com sua esposa Gloria (Paule Andral) e sua filha Joyce (Jackie Monnier). David e Gloria se detestam. Ela o trai com um aventureiro, o conde de Hoyos (Gaston Jacquet). David idolatra Joyce, que finge ser uma filha devotada, mas só pensa em explorar o pai. David sofre uma crise de angina e, durante uma discussão com Gloria no hospital, esta lhe revela que Joyce é filha de Hoyos. Para se vingar, David abandona seus negócios e vai viver sozinho. Atendendo às súplicas de Joyce, faz uma transação lucrativa na Rússia para ajudá-la e morre solitário a bordo de um navio na viagem de volta.

Grande parte do êxito do espetáculo deve-se à mestria de Duvivier, mas a outra, não menos importante, ao talento do intérprete de David Golder. Foi o que acentuaram não somente os críticos, mas também eminentes personalidades literárias e artísticas, igualmente extasiadas pela performance do ator. Na sua magnífica biografia de Harry Baur (Pygmalion, 1995), de onde colhemos muitos dados para este artigo, Hervé Le Boterf cita várias opiniões a respeito do trabalho de Baur, das quais reproduzimos apenas a do poeta Jules Supervielle: “Harry Baur interpreta o papel particularmente difícil de David Golder com uma intensidade e uma riqueza que fazem dele uma das grandes figuras da tela”.

A cena mais contundente do filme – realizado praticamente segundo a técnica do cinema mudo, mas cumprindo inteligentemente as exigências da reprodução do som – é aquela em que Golder, gravemente enfermo, se defende das manobras de sua mulher, querendo lhe arrancar um testamento em seu favor. Quando Gloria se inclina sobre seu corpo e lhe diz cruelmente que Joyce não é sua filha, Golder estende o braço e aperta o pescoço da mulher com o seu colar de pérolas. É um momento terrível, no qual o ódio e a maldade se manifestam com uma intensidade impressionante.

Harry Baur fez 37 filmes no cinema sonoro (dos quais pude ver 19 – não conheço: Le Cap Perdu / 1930, Le Juif Polonais / 1930, Criminel / 1932, Os Três Mosqueteiros / Les Trois Mousquetaires / 1932, Ave de Rapina / Cette Vieille Canaille / 1933, Rotchild / 1933, Um Homem de Ouro / Un Homme em Or / 1934, Le Greluchon Délicat / 1934, Noites Moscovitas / Les Nuits Moscovites / 1934, Olhos Negros / Les Yeux Noirs / 1935, Tarass Boulba / Tarass Boulba / 1936, Paris / 1937, Nitchevo, Agonia do Submarino / Nitchevo / 1937, Nostalgia / Nostalgie / 1937, Les Secrets de la Mer Rouge / 1937, Ódio / Mollenard / 1938, Rasputin / La Tragédie Imperiale / 1938, O Patriota / Patriote / 1938. Vou falar somente sobre os filmes que eu vi.

Depois do sucesso de A Tragédia de um Homem Rico, Duvivier propôs a Baur, Les Cinq Gentlemen Maudits / 1931, que contava a aventura de cinco jovens em Tanger onde, após uma rixa por motivo fútil, um árabe predizia uma morte rápida e brutal para eles. O script não continha um papel correspondente à idade de Baur, mas somente cinco reservados para artistas jovens (René Lefèvre, Robert Le Vigan, Marc Dantzer, Jacques Erwin e Georges Péclet). Duvivier então incluiu um personagem suplementar para Baur, que podemos qualificar de episódico.

Um acontecimento impressionante ocorreu durante a filmagem. Baur e outros membros da equipe estavam sentados sobre algumas ruínas, comendo seus sanduíches, quando apareceu um mendigo que lançou uma maldição contra aqueles europeus, porque eles estavam profanando um cemitério muçulmano. No dia seguinte, alguns membros da equipe foram vitimados por uma doença desconhecida e outros sofreram do mesmo mal nos dias subseqüentes. Rose Grane, esposa de Baur, que estava em Oran no dia da dita profanação, também não escapou à vingança do mendigo que, conforme explicou um intérprete, era um religioso. O médico diagnosticou um caso de tifo e Rose veio a falecer. Sempre que podia, Baur visitava a esposa internada num hospital na Algéria. Suas ausências e as doenças sucessivas dos atores e técnicos atrazaram a filmagem dos exteriores que, prevista para três semanas, durou mais de três meses. Nos estúdios de Epinay, onde deveria prosseguir a produção, um imenso cenário foi destruído por um incêndio inexplicável e, posteriormente, três quartos dos negativos das tomadas feitas no Marrocos, foram estragados em virtude de uma pane de eletricidade ocorrida nos laboratórios de revelação. Finalmente, por ocasião da estréia do filme, a viúva de Luitz-Morat, realizador da versão muda da mesma história, moveu uma ação judicial para impedir a exibição do filme.

Apesar desta experiência desastrada, Duvivier se dedicou, poucos meses depois, a uma outra refilmagem, a de Poil de Carotte, que ele mesmo realizara em 1925.  No romance de Jules Renard, François Lepic (Robert Lynen), um menino de 12 anos de idade e cabelos ruivos, apelidado de Poil de Carotte, é detestado pela mãe (Catherine Fonteney), mulher tirânica que reserva seu carinho para o filho mais velho, Félix (Max Fromiot). François sofre profundamente por não ser amado. Seu pai parece indiferente, preocupado com as próximas eleições municipais. Após diversas tentativas, François resolve se suicidar enforcando-se no celeiro. Felizmente M. Lepic (Harry Baur) chega a tempo de salvá-lo. Pela primeira vez o pai tem uma conversa com o filho. A partir de então, Poil de Carotte terá um defensor contra sua mãe.

Este personagem de pai rabugento, que salvava do desespero um filho destinado a servir de bode expiatório para a sua mãe, ofereceu a Baur a oportunidade de fazer uma de suas grandes composições. O ator teve um cuidado meticuloso na elaboração de M. Lepic, a ponto de exigir quinze tomadas sucessivas, a fim de encontrar a entonação e os gestos mais exatos na cena patética em que Lepic procura ganhar a afeição de seu filho, um momento de grande emoção.

Como explicou Le Boterf, em Pega-Fogo (título em português da versão de 1932), Baur havia descoberto um reflexo de seu filho Jacques, morto três anos antes (Baur tinha mais um filho, Cecil Grane, e uma filha, Loëna). Ele ficou impressionado, desde seu primeiro encontro com Robert Lynen, por uma certa semelhança existente entre este e seu próprio filho, na idade de sua primeira comunhão. Esta cumplicidade sentimental, travada entre os intérpretes do pai Lepic e Poil de Carotte, contribuiu provavelmente para a qualidade emotiva do filme de Duvivier.

Não desejando se privar de seu astro fetiche, Julien Duvivier propôs a Harry Baur que ele encarnasse um personagem bem diferente, o do comissário Maigret em A Cabeça de um Homem / La Tête d’un Homme / 1932. O que interessava ao diretor nesta ilustração do romance de Georges Simenon era menos a intriga do que uma análise de caracteres motivada pelo confronto entre um comissário de polícia e um paranóico, devorado pela ambição de cometer um crime perfeito espetacular. No filme não há mistério, mas somente oposição, a luta entre dois temperamentos. Trata-se, enfim, de um estudo psicológico e, graças à presença de dois grandes atores – Baur no papel de Maigret e Valéry Inkijinoff no papel do assassino Radek -, Duvivier conseguiu reconstituir com perfeição esse duelo entre duas personalidades fortes.

O próximo de filme de Harry Baur, que eu vi e gostei, foi Os Miseráveis / Les Misérables / 1934, dirigido por Raymond Bernard, no qual ele encontrou o papel mais marcante de sua carreira. Apesar da compressão da intriga, o grande afresco romântico e social de Victor Hugo foi levado à tela com muita fidelidade. A interpretação de Harry Baur, que está sublime em todas as encarnações do personagem – de Jean Valjean a Fauchelevent e Madeleine, aos quais ele ainda acrescentou a figura episódica de Champmathieu – jamais foi superada por outro ator. Também admiráveis foram os trabalhos de Charles Vanel, como o inflexível Javert; Florelle, assumindo os traços luminosos de Fantine; Charles Dullin e Marquerite Moreno, formando uma dupla dissimulada e sarcástica nos papéis de Thénardier e senhora, Jean Servais e Josseline Gaël, compondo com graça juvenil o par romântico de Marius e Cosette, sem esquecermos de Henry Krauss (Bispo Myriel), Orane Demazis (Eponine), Robert Vidalin (Enjolras), Emile Genevois (Gavroche), Max Dearly (Gillenormand) e a pequenina Gaby Triquet (Cosette menina).

Abro um parênteses para dizer que lamento muito não ter visto os filmes do chamado “ciclo eslavo” de Baur, propulsionado pelo êxito de Noites Moscovitas. Inspirado no romance de Pierre Benoit, o enredo focaliza um mercador de trigo, Piotr Brioukow (Harry Baur) e um oficial do exército de Nicolau II acusado injustamente de traição (Pierre Richard-Willm), que estão apaixonados por uma jovem aristocrata (Annabella). No final, o comerciante grosseiro e beberrão testemunha em favor de seu rival, salvando-o da execução e se sacrifica, para que o casal possa viver alguns dias felizes antes da Revolução de Outubro. Depois do sucesso deste filme, os produtores passaram a oferecer ao ator muitos papéis de russos e assim sucederam-se – em alternância com outros filmes não relacionados com a Rússia – Olhos Negros, Tarass Boulba, Rasputin e O Patriota, nos quais Baur era visto pela ordem como Ivan Ivanovitch Petroff, Tarass Boulba, Rasputin e o Tsar Paulo I.

Segundo Le Boterf, a composição de Baur como Tarass Boulba foi uma das mais prodigiosas de sua carreira. Beberrão, colérico, violento e subitamente preocupado com os filhos, com sua cabeça raspada e seus enormes bigodes, ele traçou um retrato ao mesmo tempo feroz e pungente do personagem de Nicolas Gogol. Baur soube extrair efeitos maravilhosos das cenas principais: a execução de seu filho André (Jean-Pierre Aumont), os regabofes e a dança cossaca no acampamento e sobretudo a morte inesquecível do grande líder ao pé de uma árvore cuja folhagem abrigava sua agonia. Como escreveu seu notável biógrafo, “Nunca, depois de Os Miseráveis, Harry Baur havia usufruido de um triunfo tão grande na tela”.

Entre esses intermédios de atmosfera eslava, Baur encontrou tempo para atuar em outros filmes, entre os quais destaco: Assassino sem Culpa / Crime et Châtiment / 1935 e Um Grande Amor de Beethoven / Un Grand Amour de Beethoven / 1937.

Em Assassino sem Culpa, Pierre Chenal compreendeu que era difícil reproduzir a significação metafísica da obra literária e preferiu fazer uma adaptação simplesmente dramática do romance de Dostoievski, usando a iluminação e os enquadramentos expressionistas, para criar uma atmosfera russa estilizada, carregada de tristeza, sordidez e miséria. Porém o ponto alto do filme é a confrontação psicológica em um jogo de gato e rato, entre o juiz astuto tentando obter uma confissão do criminoso e o estudante atormentado que, no fundo, deseja se liberar do seu segredo.

Baur aceitou o papel do comissário Porfírio, porque teria oportunidade de contracenar com seu colega Pierre Blanchar, encarregado de personificar o estudante Raskolnikov, num duelo artístico estimulante. A interpretação de Pierre Blanchar com aquele olhar alucinado, a dicção estranha, os risos nervosos, contrasta com a atuação mais sutil e contida de Harry Baur, ambos magníficos atores. Mas foi Blanchar, e não o seu parceiro, que obteve o prêmio Volpi de Melhor Ator na Mostra Internacional de Veneza em 1935. Entretanto, Baur não manifestou nenhum despeito e consentiu que seu nome figurasse em segundo lugar nos letreiros e nos cartazes do filme. “Por causa do papel. Por causa de Pierre Blanchar”, declarou ele com fidalguia.

Em O Grande Amor de Beethoven, Abel Gance preferiu evocar – com seu lirismo desmesurado – o período mais doloroso vivido por Beethoven, que coincidiu com a constatação de sua surdez total, seus desgostos sentimentais e a expansão do seu gênio artístico, a fim de dar um máximo de intensidade dramática ao espetáculo.

O grande amor é o de Beethoven (Harry Baur) por Giulietta Guicciardi (Jany Holt), sem compreender que ela apenas lhe dedica amizade e admiração. Giulietta se casa com o conde Gallenberg (Jean Debucourt). Ao receber esta notícia e perceber que está totalmente surdo, Beethoven cai em depressão. O compositor se retira para o velho moinho de Heiligenstadt, onde permanece sozinho por algum tempo. Retornando a Viena, Beethoven recebe em sua casa uma mulher doce e apaixonada, Thérèse de Brunswick (Annie Ducaux), a prima de Giulietta. Esta acaba reconhecendo seu erro ao se casar com Gallenberg e Beethoven a perdoa, escrevendo a famosa carta à “amada imortal”. Thérèse pensa que esta declaração de amor se refere a ela e Beethoven não ousa dissipar o engano. Porém Thérèse depois percebe que a sonata “Appassionata” é dedicada à memória de Giulietta e se resigna a ser apenas uma amiga de Beethoven. O grande compositor morre durante uma tempestade, em presença de Giulietta, que viera para lhe dar o último adeus. Na mesma noite, um concerto, ao qual assiste a amiga fiel, Thérèse de Brusnwick, consagra o gênio musical de Beethoven.

Gance estabelece uma simbiose perfeita entre imagem e música, por exemplo, na declaração de amor ao som da Sonata ao Luar, na surpreendente execução da Nona Sinfonia sem trilha sonora para evocar o mundo dos surdos, na Sinfonia Pastoral ajudando a compreender o mecanismo da criação. Baur levou muito a sério a composição do personagem. Bom músico que era, pôs-se a executar as sonatas do compositor no piano, em cujo teclado não tocava desde o falecimento de seu filho Jacques, e freqüentou numerosos concertos sozinho ou na companhia de Rika Radifé, que ele havia esposado alguns meses antes. Baur ficou mesmo deslumbrado com a oportunidade de ser Beethoven na tela, então disse: “É uma recompensa na carreira de um ator ver seu nome unido à existência mais bela, mais comovente, depois da vida do Cristo. Este homem crucificado pela música, que ele não podia ouvir”.

Outros papéis que Harry Baur representou e que não me saem da lembrança: o tetrarca Herodes em Golgotha / Golgotha / 1935, o imperador Rodolfo II em Golem, o Monstro de Barro / Le Golem / 1936, o banqueiro Jacques Brachart em Sansão / Samson / 1936, o construtor Bourron em Les Hommes Nouveaux / 1937, o monge regente do coro infantil em Um Carnet de Baile / Un Carnet de Bal / 1937, César Sarati, o ex-estivador quase incestuoso que impõe sua lei nas docas de Argel, em Sarati le Terrible / 1938 (no qual teve ao seu lado Rika Radifé), o médico colonial Dr.Bourdet em L’Homme du Niger / 1939, o magistrado Haudecoeur em Le Président Haudecoeur / 1939 (contracenando com seu filho Cecil Grane),  o avarento esperto e mesquinho em Volpone, o Demônio de Paris / Volpone / 1940, o fabricante de mapas-múndi Père Cornusse em L’Assassinat du Père Noel / 1941, o quinquagenário Lacalade que procura os filhos nascidos de suas relações na juventude em Péchés de Jeunesse / 1941 e o maestro Stéphane Melchior em Sinfonie eines Lebens / 1942

Durante a Ocupação, após ter atuado como astro de dois filmes (L’Assassinat du Père Noel e Péchés de Jeunesse) produzidos pela Continental, a companhia destinada a produzir na França filmes com capital alemão e mão de obra francesa, dirigida por Alfred Greven, Baur tornou-se, no plano artístico, um símbolo da colaboração franco-alemã. Em diversas ocasiões ele foi visto congratulando-se com artistas do cinema nazista de passagem por Paris e se deixou fotografar com eles. Baur não recusou o convite de Greven para participar de um jantar oferecido pela Continental em homenagem a Zarah Leander, a famosa estrela dos estúdios alemães nem da recepção organizada no Maxim’s para acolher o grande ator germânico, Heinrich George. Baur tentou escapar das garras da Continental e caiu em outras, muito mais comprometedoras, da Tobis, cuja sede não era em Paris, mas no coração mesmo do Terceiro Reich. Ele assinou um contrato de seis meses com a Tobis, para fazer um filme cem por cento alemão, Sinfonie eines Lebens, que, por um cachê de seis milhões de francos, faria dele o primeiro astro trabalhando nos estúdios nazistas depois da derrota da França e serviria assim como prelúdio a uma política de trocas cinematográficas entre Paris e Berlim.

Depois que o filme alemão terminou, Baur retornou a Paris tranqüilamente. Pouco depois, no dia 30 de maio de 1942, sua esposa e ele foram presos pela polícia alemã e transferidos respectivamente para a prisão de la Santé e du Cherche-Midi. Rika foi libertada após cento e quinze dias de detenção. Seu marido foi impedido de receber visitas, correspondência e até remédios. Ele foi solto em 19 de setembro de 1942, em condições físicas lamentáveis.

O aprisionamento do ator suscitou diversas interpretações (entre elas a de que era membro da Resistência ou um agente inglês, que teria favorecido a evasão de vários prisioneiros), mas segundo sua viúva declarou após a Libertação, ele foi motivado por uma denúncia feita por um certo Edouard B…, ator obscuro que Baur conhecera na sua juventude. O conteúdo do bilhete do delator era sucinto: “Harry Baur é judeu, casado com uma judia, sua filha se casou com um judeu argelino, seus filhos foram educados na religião judaica”. Baur, que já vinha sendo apontado como judeu e franco-maçom pela imprensa colaboracionista e anti-semita, foi acusado de ter obtido um certificado falso de ascendência ariana.

Existem duas hipóteses para a sua libertação: ou os alemães o soltaram porque constataram que ele não era judeu ou o deixaram ir para casa, bastante enfraquecido, para dar ao seu fim próximo a aparência de uma “morte natural”.

Baur sempre afirmara que era “um velho católico” e morreu aos 63 anos de idade, em 8 de abril de 1943, assistido pelo padre que o visitava cotidianamente nos seus dias de agonia. O funeral ocorreu na igreja Saint-Philippe-du-Roule e seu corpo, com um rosário atado nos seus dedos, foi enterrado no cemitério Saint-Vincent em Montmartre.

Quanto à Rika Radifé, ela se dizia muçulmana e, após a morte de Bauer, teria se convertido ao catolicismo, conquistada pela piedade do sacerdote que trouxera conforto espiritual para seu marido. Rika aparentemente, não foi mais incomodada pela Gestapo durante os últimos anos da ocupação. Ela veio a falecer em 1983, após ter dirigido, durante trinta anos, o Thêatre des Mathurins em Paris.

NORMA TALMADGE

Norma Talmadge foi atração de bilheteria por mais de uma década. Sua carreira atingiu o auge no começo dos anos 20, quando ela figurava entre os ídolos mais populares do cinema mudo americano.

Especializada em melodramas, com um dos rostos mais expressivos da tela, elegante e glamourosa, Norma era adorada pelos espectadores e pelos críticos. Hoje, infelizmente, quase ninguém mais se lembra dela, porque seus filmes são menos acessíveis do que os de outras grandes estrelas da época. Alguns historiadores recentes, sem dispor das fontes primárias, mencionam o seu nome apenas de passagem ou emitem um julgamento impreciso sobre a sua capacidade artística.

Como se isto não bastasse, Norma inspirou duas caricaturas injustas que continuam vivas num par de filmes famosos. Em Cantando na Chuva / Singin’ in the Rain / 1952 ela é parodiada como Lina Lamont (Jean Hagen), uma estrela da cena muda, cujo sotaque do Brooklyn prejudica sua estréia no cinema falado num drama histórico francês (muita gente atribuiu erroneamente o fracasso do segundo filme sonoro de Norma, Du Barry, a Sedutora / Du Barry, Woman of Passion / 1930, ao seu sotaque do Brooklyn). Billy Wilder usou Norma Talmadge como o modelo óbvio, embora não reconhecido, de Norma Desmond, a decadente e grotesca estrela do cinema silencioso no seu filme Crepúsculo dos Deuses / Sunset Boulevard / 1950. Interpretada entusiasticamente por Gloria Swanson, uma das rivais de Norma Talmadge nos anos 20, a personagem de Norma Desmond inspira-se na reclusão de Norma (que abandonou o cinema no começo da década de trinta e foi morar numa mansão em Beverly Hills com a enorme fortuna que ganhou nos seus dias de glória), no seu conhecido romance com um homem bem mais jovem do que ela, Gilbert Roland, seu parceiro em vários filmes de sucesso e no seu comportamento excêntrico (sofrendo de artrite, ela se tornou viciada em remédios para aliviar a dor).

Apesar de que uma alta percentagem de seus filmes ainda sobreviva, eles não costumam ser reapresentados e, até o presente momento, existe apenas um dvd em cópia muito boa: Kiki / Within the Law, lançada pelo Kino International em 2010. De modo que escrevo este artigo, baseando-me em matérias publicadas nas revistas de cinema antigas e nas conversas que tive com o maior fã brasileiro de Norma, o saudoso Rozendo Marinho, que organizou, nos anos 60, uma inesquecível Mostra de Cinema Americano.

Norma Talmadge nasceu em Jersey City, New Jersey em 1894. Ela era a filha mais velha de Fred Talmadge, um alcoólatra crônico, que estava sempre desempregado e Margaret “Peg” Talmadge, mulher arguta e decidida. A infância de Norma foi marcada pela pobreza. Numa manhã de Natal seu pai saiu de casa para comprar alimento e não voltou, deixando para a esposa a tarefa de criar as três filhas pequenas do casal.

“Peg” educou-as no Brooklyn em Nova York com muito esforço e determinação até que, ao saber que uma colega de colégio de Norma posava para as illustrated songs (canções ou hinos patrióticos ilustrados por slides de lanterna mágica, mostrando as letras das canções e poses de modelos, representando trechos das mesmas, que eram apresentados antes dos filmes de um rolo nos primeiros cinemas), Mrs. Talmadge procurou o fotógrafo e marcou uma entrevista para sua filha Norma. Após uma rejeição inicial, a mocinha acabou sendo aprovada. Quando “Peg” e suas filhas foram ver a sua “estréia” como modelo, a resoluta progenitora resolveu encaminhar as três filhas (as outras chamavam-se Constance e Natalie) para o cinema.

Norma era a mais bonita e foi a primeira a ser estimulada pela mãe a iniciar uma carreira como atriz cinematográfica. Mãe e filha rumaram para os estúdios da Vitagraph em Flatbush, Nova York, que ficava perto da casa onde moravam. Norma fez uma quantidade de pequenos papéis em filmes curtos entre 1909 e 1912 e, em 1911, chamou a atenção como Mimi, a costureirinha que acompanha Sidney Carton para a guilhotina na primeira versão cinematográfica de A Tomada da Bastilha / A Tale of Two Cities de Charles Dickens, épico de três horas de duração, estrelado pelo principal ator do estúdio, Maurice Costello.

Em 1913, a filha mais velha de “Peg” era uma das jovens atrizes mais promissoras da Vitagraph. Dois anos depois, ela teve um papel de destaque em A Invasão dos Estados Unidos ou Invasão dos Bárbaros / The Battle Cry of Peace, curioso filme de propaganda anti-germânica em chave de fantasia, descrevendo uma futura próxima invasão dos Estados Unidos por legiões comandadas por um ditador chamado “Emanon” (ou, lendo de trás para diante,  “no name “ / sem nome) e a subjugação do povo americano.

A ambiciosa “Peg” percebeu que poderia levar mais adiante a carreira da filha e partiu com a família para a Califórnia, onde Norma assinou um contrato de dois anos com a National Pictures Corporation, para a realização de oito filmes com o salário de 400 dólares semanais. Entretanto, o primeiro filme na National, Captivating Mary Carstairs, foi um fracasso e a companhia logo fechou as portas.

Sem desanimar, “Peg” bateu na porta da Triangle Film Corporation e conseguiu que Norma fosse contratata pela Fine Arts Company, nome da firma criada para produzir os filmes supervisionados por D.W.Griffith. Durante oito meses, Norma foi a atriz principal de sete filmes entre os quais  Malditos Homens / The Social Secretary / 1916, comédia escrita por Anita Loos, que anos depois escreveria The Talmadge Girls: A Memoir (Viking Press, 1978).

Quando o contrato com a Fine Arts terminou, as irmãs Talmadges voltaram para Nova York. Numa festa, Norma conheceu Joseph M. Schenck, exibidor rico, que tinha a pretensão de produzir seus próprios filmes. Dois meses depois, em 20 de outubro de 1916, eles estavam casados. Norma chamava seu marido bem mais velho, de “Papai”. Ele passou a dirigir, controlar e impulsionar a carreira de Norma em aliança com a mãe dela.

Em 1917 o casal fundou a Norma Talmadge Film Corporation e a empresa se tornou muito lucrativa. Schenck queria fazer de sua esposa a maior de todas as estrelas, reservando para ela as melhores histórias, os figurinos mais luxuosos, os cenários mais opulentos, os elencos mais talentosos e os diretores de maior prestígio, juntamente com uma publicidade espetacular. Em pouco tempo, as mulheres de todo o mundo queriam ser a romântica Norma Talmadge e afluíam em massa para ver seus filmes extravagantes.

Schenck logo passou a ter um grupo de astros atuando no seu estúdio de Nova York com a Norma Talmadge Corporation produzindo dramas no andar térreo, a Constance Talmadge Film Corporation produzindo comédias sofisticadas no segundo andar, a Unidade Cômica com Roscoe “Fatty” Arbuckle no último andar e Natalie Talmadge exercendo a função de secretária e interpretando ocasionalmente pequenos papéis nos filmes de suas irmãs. Arbuckle trouxe para o estúdio seu sobrinho Al St. John e o artista do vaudeville Buster Keaton. Quando Schenck decidiu que era financeiramente mais vantajoso alugar os serviços de Roscoe para a Paramount Pictures, Keaton assumiu seu lugar na unidade cômica e pouco depois casou-se com Natalie, reforçando seu relacionamento com a família Talmadge. Natalie teve um momento de fama, atuando ao lado de Keaton em Nossa Hospitalidade / Our Hospitality / 1923.

O primeiro filme de Norma para a sua companhia foi Pantéia / Panthea / 1917, dirigido por Allan Dwan, tendo como assistentes Erich Von Stroheim e Arthur Rosson. Neste melodrama tendo como pano de fundo a Rússia imperial, Panthea (Norma Talmadge) é uma jovem pianista, cuja beleza atraí o Barão de Duisitor (Roger Lytton), que arma um esquema para conquistá-la; mas ela consegue fugir para a Inglaterra, onde se casa com o compositor Gerard Mordaunt (Earle Fox), filho de um nobre britânico. O sonho do marido é ver sua ópera encenada. Sem conseguir realizar o seu sonho, ele fica doente e os médicos acham que, se a ambição do rapaz não for concretizada rapidamente, não haverá cura. O casal vai para Paris e ali Panthea reencontra o barão, que tem muita influência no meio musical, e consente em se sacrificar, para salvar o marido. O filme foi muito admirado pelos efeitos de luz audaciosos inventados por Dwan e seus fotógrafos Roy Overbaugh e Harold Rosson. Eles sugeriram um vasto cenário simplesmente com a ajuda da iluminação e jogaram um pó de alumínio nos feixes de luz para dar mais substância aos raios luminosos. O espetáculo foi um sucesso e consagrou Norma como uma excelente atriz dramática.

Sob a supervisão de Schenck seguiram-se vários filmes entre eles Papoula Viçosa ou Visão de Amor / Poppy / 1917, no qual Norma contracenava com Eugene O’Brien. A dupla deu tão certo, que foram realizados mais dez filmes com Norma e Eugene: As Duas Mulheres / The Ghosts of Yesterday / 1917, A Mariposa / The Moth / 1917, Por Direito de Compra / By Right of Purchase / 1918, Annie de Luxo / De Luxe Annie / 1918, Recurso Supremo / Her Only Way / 1918, Pano de Segurança / The Safety Curtain / 1918, A Voz do Minarete / The Voice from the Minaret / 1923, A Única Mulher / The Only Woman / 1924, Segredos / Secrets / 1924 e Amor de Príncipe / Graustark / 1925.

Em Papoula Viçosa, Norma é Poppy Destinn, uma órfã maltratada, que foge de sua casa no interior da África e se perde na selva. Perseguida por um nativo, ela é salva por Sir Evelyn Carson (Eugene O’ Brien); mas se recusa a ficar muito tempo com ele, porque tem medo. Poppy depois procura refúgio na casa de Luce Abinger (Frederick Perry), um homem que não respeita as mulheres. Sob o pretexto de adotar Poppy, Luce se casa com ela e, como a cerimônia de casamento é falada em francês, Poppy não entende o que está acontecendo. Quando Luce está viajando, Carson reencontra Poppy e os dois se apaixonam, ocorrendo, em conseqüência, desdobramentos dramáticos da intriga. Por causa deste filme, os fãs brasileiros deram a Norma o apelido de “Papoula Viçosa” (vg. em Cinearte de 8/6/1927 pg.28).

Cidade Proibida / The Forbidden City / 1917, dirigido por Sidney Franklin, foi um dos filmes mais expressivos de Norma no período anterior aos anos 20. Ela interpreta o papel duplo de San San e Toy. San San, filha de um mandarim chinês, casa-se secretamente com John Worden (Thomas Meigham), secretário assistente do Consulado Americano e vive feliz com ele, até que seu pai decide, na ausência de Warden, oferecê-la para o harem do imperador chinês. Quando o imperador vê Toy, a filha de San San, ele fica furioso e manda matar a mãe da criança. Worden deixa o país. Dezoito anos mais tarde, Toy, criada pelas mulheres do harém, escapa para Manila, onde vai servir como enfermeira da Cruz Vermelha. Ela fica noiva de um tenente americano, Philip Halbert (Reed Hamilton), porém o tutor do rapaz proíbe a união. Mais tarde, Toy é chamada para cuidar do guardião enfermo que, no seu delírio, revela que é o pai de Toy. Worden, lembrando-se com saudade de San San, finalmente abençoa o casamento dos dois jovens.

O Variety comentou: “Miss Talmadge interpreta ambos os papéis com uma habilidade e talento artístico que vão aumentar a sua já grande reputação como uma favorita da tela”. Foram muito lembradas pelos fãs a prece de San San para Buda (“Oh, Buddha traga homem do amor aquí para me dar um milhão de beijos doces”) e a declaração de Toy: “Eu americana, não necessito ancestrais”.

Nos anos 1921-1922, Norma teve pelo menos quatro filmes de muito êxito nas bilheterias: Flor de Paixão / Passion Flower / 1921, Quanto Pode o Amor / Love’s Redemption / 1921, Morrer Sorrindo / Smilin’ Through / 1922 e A Duquesa de Langeais / The Eternal Flame / 1922.

A personagem de Norma em Flor de Paixão tem o nome de Acácia. Ela despreza o seu padrasto, Esteban (Courtenay Foote), e aceita casar com seu primo, Norbert (Harrison Ford). Secretamente apaixonado por Acácia, Esteban arma um esquema para acabar com o noivado, desenrolando-se vários acontecimentos trágicos. O filme, realizado por Herbert Brennon, recebeu muitos elogios, tendo sido classificado como o drama mais forte no qual Norma apareceu.

Em Quanto Pode o Amor, Norma é Jennie Dobson, uma jovem órfã conhecida como Ginger, que vive sob a tutela do Capitão Bill Hennessey, um lobo-do-mar. Ginger conhece e se apaixona por Clifford Standish (Harrison Ford), um inglês exilado e alcoólatra, dono de uma plantação, que lhe propõe casamento. O irmão de Clifford (Michael M. Barnes) chega da Inglaterra, para lhe dizer que ele herdou uma fortuna e fica chocado ao saber do casamento com Ginger. Na Inglaterra, Ginger é recebida friamente por seus parentes. Clifford volta a levar uma vida dissipada. Quando Ginger descobre um convidado roubando no jogo de cartas, segue-se uma confusão e o pai de Clifford (Montagu Love) insiste para que ela retorne à Jamaica. Percebendo quanto vale o seu amor, Clifford rejeita sua família e volta com ela.

Quanto Pode o Amor, sob a direção de Albert Parker, segundo os comentaristas da época, era apenas um bom espetáculo, sem ter nada de extraordinário. Porém o filme seguinte de Norma, Morrer Sorrindo / Smilin’ Through / 1922, dirigido por Sidney Franklin e refilmado duas vezes, uma com Mary Pickford em 1932 e outra com Jeanette MacDonald em 1941, tem sido aclamado como o mais popular de toda a sua carreira.

No dia em que John Carteret (Wyndham Standing) vai se casar com Moonyeen (Norma Talmadge), Jeremiah Wayne, um dos pretendentes rejeitados por Moonyeen mata-a inadvertidamente ao tentar atirar em John. Vinte anos depois, a sobrinha de John, Kathleen (Norma Talmadge), para espanto do tio, anuncia que vai se casar com o filho de Jeremiah, Kenneth (Harrison Ford). Amargurado, John se opõe a esta união e proibe Kathleen de ver Kenneth de novo. Irrompe a Guerra Mundial e Kenneth parte para a França, onde é gravemente ferido. Retornando aos Estados Unidos, ele faz Kathleen (que aguardava pacientemente a sua volta) acreditar que voltou para amar uma outra mulher. Kathleen fica de coração partido e John, sentindo imensamente a sua tristeza, dá um jeito de reuní-la com Kenneth. Com o par de amantes juntos novamente, John morre em paz, juntando-se ao espírito de Moonyeen no outro mundo.

O colunista da Moving Picture World escreveu, com a devida alteração de pormenores: “Norma faz um papel duplo e em cada personagem ela demonstra uma capacidade de interpretação contida, que é uma façanha da mais alta categoria”.

A Duquesa de Langeais é uma adaptação livre do romance de Honoré de Balzac, dirigida por Frank Lloyd, contando a história, passada no reinado de Louis XVIII, da coquette Antoine de Langeais (Norma Talmadge), esposa do Duque de Langeais (Adolphe Menjou), que brinca com fogo, provocando o General-Marquês de Montriveau (Conway Terle), loucamente apaixonado por ela. O flerte acaba em amor e o general acredita que ela é sincera, até que fica sabendo de que a duquesa vangloriou-se de sua conquista. Furioso, Montriveau rapta Antoine, porém, incapaz de lhe infligir o castigo que planejara, liberta-a. Achando que seu amor não é correspondido, a duquesa entra para um convento. O general se arrepende e vai à procura de sua amada, encontrando-a pouco antes dela fazer os seus últimos votos para se tornar freira.

O resenhista do Variety disse que as cenas no convento, com seu ambiente austero admiravelmente iluminado, dão ao filme um efeito pictórico formidável e elogiou também a seqüência do baile, quando centenas de dançarinos nos trajes vistosos da época rodopiam graciosamente pelo salão. Um outro crítico, referindo-se a Norma, mencionou seu “tipo essencial de beleza, seu rosto eloqüente”, porém acrescentou que essa produção dispendiosa “tinha muito pouco poder emocional e dramático”.

Os filmes seguintes eram típicos de Norma Talmadge, mas sem qualidades apreciáveis, embora continuassem agradando ao público. Entretanto, num deles, Segredos / Secrets / 1924, dirigido por Frank Borzage, a atriz, na opinião unânime dos comentaristas, teve seu melhor desempenho.

Em Segredos, os espectadores a viam em 1865, como uma mocinha fugindo com seu namorado contra o desejo da família; em 1870, uma jovem esposa na região da fronteira, junto com o marido resistindo a um ataque de bandidos e perdendo seu filho recém-nascido; em 1888 como uma mulher de meia idade rica, cujo esposo havia se apaixonado por uma mulher mais jovem; e em 1923, como uma avó idosa encarando corajosamente a morte de seu devotado companheiro que há muito tempo havia se arrependido de seu mau comportamento.

Uma das características marcantes da atriz, seu virtuosismo para viver personagens femininas de variadas etnias, classes sociais e idades, ficou mais do que evidente. Os críticos louvaram o trabalho de Borzage, a maneira pela qual ele conduziu Norma, fazendo-a revelar a sua arte interpretativa, tal como nunca havia feito antes. A predileção de Borzage por temas de sacrifício e força redentora do amor, combinou perfeitamente com a sensibilidade e sutileza de Norma Talmadge e o filme foi recebido calorosamente.

Ainda orientada por Borzage em A Grande Dama / The Lady / 1925, Norma teve a oportunidade de interpretar de novo uma mulher em várias fases de sua vida. Sua personagem, Polly Pearl, cantora do music hall, casa-se, fora do seu meio social, com um cavalheiro muito rico, Leonard St. Aubyns (Wallace McDonald). O pai de Leonard (Brandon Hurst) imediatamente deserda o filho e este depois morre, deixando Polly sozinha com seu bebê e sem dinheiro. Polly vai cantar no cabaré / bordel de Madame Blanche (Emily Fitzroy) em Marsellha.. Quando o avô tenta obter a guarda do neto, Polly deixa-o sob os cuidados de um pastor e sua mulher, que o levam para a Inglaterra. Logo depois, Polly vai a Londres em busca do filho, mas não o encontra, e vende flores na rua para se sustentar. A pobre mãe reza para que seu filho se torne um cavalheiro, porque ela gostaria de ser uma dama. Passam-se alguns anos, Madame Blanche morre e deixa suas economias para Polly. Esta abre um bar em Marsellha, onde uma dia chegam dois soldados britânicos, um embriagado e o outro tentando protegê-lo. O bêbado puxa uma briga e durante a luta é morto acidentalmente pelo companheiro. Polly descobre que este é seu filho e quer assumir a culpa pelo crime, porém seu filho, com o instinto de um cavalheiro, não permite que ela se sacrifique por ele. O rapaz consegue escapar das autoridades e parte para a América a fim de começar uma nova vida. Então surge um estranho e Polly, em êxtase, diz-lhe que está feliz, por seu filho ser um cavalheiro. E o estranho diz a Polly que o motivo pelo qual seu filho é um cavalheiro, é porque sua mãe é uma grande dama.

Segundo Jeanine Basinger (Silent Stars, 1999), “a trama é puro melodrama, mas Norma e Borzage lhe dão credibilidade…A Grande Dama é típico do seu tempo e os tempos mudaram, porém é um obra inteligente, apresentando sua história sentimental com dignidade e simplicidade”. Como explicou Basinger, Norma era o gênero em que habitava – o filme para mulheres.

Em Kiki / Kiki / 1926, Norma é uma jovem parisiense tentando ser corista. Ela vive brigando com Paulette (Gertrude Astor), a estrela e namorada do gerente do teatro, Victor Renal (Ronald Colman) e acaba conquistando o amor dele. Clarence Brown dirigiu esta comédia dramática – escrita por Hans Kräly – na qual Norma, apesar de não ter a mocidade que o papel requeria, demonstra seu talento histriônico. Brown declarou numa entrevista que Norma possuia um dom natural para a comédia e Jeanine Basinger deu como exemplo uma seqüência, na qual ela finge que está inconsciente e dura como uma tábua. O seu timing enquanto o médico levanta e abaixa sua perna e seu braço se levanta, diz Jeanine, “é digno de Mack Sennett”. Já o comentarista da nossa Cinearte achou a cena em que Norma toma o cartão da candidata ao lugar de corista, “engraçadíssima”. Ao ver Norma no dvd de Kiki, concordei com ambos: tanto a sequência descrita por Jeanine, na qual o doutor diagnostica um ataque de catalepsia quanto a da estratégia da jovem vendedora de jornais para chegar ao empresário são muito divertidas e fiquei ansioso para ver outros filmes da “Papoula Viçosa”.

Norma fez A Dama das Camélias / Camille em 1927 e A Mulher Cobiçada / The Dove e Pecadora sem Mácula / The Woman Disputed em 1928. Estes filmes foram virtualmente o seu fim. Ela esteve fora das telas em 1929 e retornou em 1930, para tentar o filme sonoro com Noites de Nova York / New York Nights e Du Barry, a Sedutora / Du Barry, Woman of Passion, dois fracassos. Então sua carreira estava oficialmente encerrada, e ela nunca mais fez outro filme.

A Dama das Camélias tinha um bom elenco de apoio para Norma: Gilbert Roland (Armand), Maurice Costello (Monsieur Duval), Lilyan Tashman (Olympe) e altos valores de produção; mas, como observou o Variety, ao filme propriamente dito, do modo como foi dirigido por Fred Niblo, “faltava vigor”.

Durante a filmagem, Norma se apaixonou por Gilbert Roland. Ela pediu o divórcio para Schenck, porém este não estava pronto para concedê-lo. Apesar de seus sentimentos pessoais, ele continuou produzindo os próximos três filmes reunindo Norma e Gilbert, que passaram a ser distribuídos pela United Artists, companhia da qual acabara de assumir a presidência.

Em A Mulher Cobiçada Norma é Dolores, uma dançarina conhecida como “The Dove” (A Pomba), que está apaixonada por um jogador chamado Johnny Powell (Gilbert Roland). Don José, um rico caballero fascinado pela beleza de Dolores, faz com que Powell seja acusado de assassinato. Dolores consente em se casar com Don José, para livrar Powell da prisão; porém, no dia da cerimônia matrimonial, Powell retorna do exílio para buscar Dolores. Após uma fuga frustrada, Powell e Dolores estão prestes a serem mortos, quando uma multidão de cidadãos força Don José a libertá-los.

Pecadora sem Mácula apresenta Norma como uma prostituta de coração nobre, regenerada por dois amigos militares de licença em Lemberg na Áustria,, um austríaco, Paul Hartman (Gilbert Roland) e um russo, Nika Turgenov (Arnold Kent). Quando a guerra entre Áustria e Russia é declarada, os dois rapazes são chamados para os seus regimentos. Mary promete casar-se com Paul e Nika jura vingança. Uma unidade do exército russo comandada por Nika depois ocupa Lemberg e Mary sente que tem que se submeter aos seus abraços, para obter a liberdade de um espião capturado. No dia seguinte, o exército austríaco, guiado pelas informações do espião, retoma Lemberg e Paul fica sabendo do sacrifício de Mary. Ele a princípio recusa-se a perdoá-la, mas quando dez mil homens ajoelham-se aos pés dela em sinal de gratidão, Paul se junta a eles emocionado.

Norma volta a ser uma corista em Noites de Nova York, desta vez chamada Jill Deverne, que sustenta seu marido Fred (Gilbert Roland), um compositor com forte tendência para o alcoolismo. Quando ele termina uma nova canção, Jill consente em mostrá-la a Joe Prividi (John Wray) um escroque, produtor do seu espetáculo musical; porém Fred não quer receber favores dele. Não obstante, Prividi, que cobiça Jill, concorda em usar a canção. Fred e seu parceiro Johnny Dolan (Roscoe Karns) chegam bêbados para um compromisso em uma buate e, numa batida, os policiais descobrem Fred com Ruthie (Mary Doran), que também é corista. Com raiva de Fred, Jill torna-se namorada de Prividi, sucedendo-se outras peripécias, até o final feliz entre Jill e Fred.

Com esses três filmes, dirigidos, pela ordem, por Roland West, Henry King e Lewis Milestone, Norma manteve seu poder de atração intacto; entretanto, como observou Jeanine Basinger, tanto ela quanto os críticos estavam ficando desencorajados. Du Barry, a Sedutora, também decepcionou, e pôs um fim na sua carreira.

Em 1929, Schenck estava fora da vida de Norma embora eles ainda não estivessem oficialmente divorciados (Schenck só lhe concedeu o divórcio em 1934 e, nove dias depois, ela se casou, não com Gilbert Roland, mas com o comediante George Jessel). Norma passou o ano inteiro preparando-se para a sua estréia no cinema sonoro. Entretanto, seus dois últimos filmes, nos quais ela “falou”, foram um desastre, mas não pelo motivo geralmente citado. Sua voz não tinha qualquer traço de um sotaque do Brooklyn. Os tempos simplesmente estavam mudando e um público enlouquecido pelos talkies, queria uma nova safra de estrelas para ver (e ouvir) na tela.

Norma recebeu um telegrama de sua irmã Constance com o seguinte conselho: “Não abuse de sua sorte, baby. Os críticos não podem destruir aqueles investimentos que mamãe fez para nós”. Percebendo a sabedoria destas palavras, Norma Talmadge deixou o Cinema para sempre. Ela se divorciou de Jessel em 1939 e, em 1946, casou-se com o seu médico, Dr. Carvel James.

Nos derradeiros anos de sua vida, Norma, que nunca esteve à vontade com o fardo da celebridade pública, tornou-se uma reclusa, cada vez mais incomodada pela artrite e, segundo consta, dependente de drogas para aliviar a dor, vindo finalmente a falecer em 1957.

Pouco depois de sua aposentadoria, uma horda de caçadores de autógrafos cercou-a, quando ela saía de um restaurante em Hollywood. Norma disse para eles docemente: “Vão embora, meninos, não preciso mais de vocês”.