Embora seja mais lembrado hoje pela suas aparições no cinema, a maior contribuição de Louis Jouvet foi para o teatro francês. Jouvet era não só um grande ator e diretor como um ensaísta atento a todos os aspectos da dramaturgia.
Entretanto, foram os filmes, muitos dos quais são clássicos inquestionáveis do cinema francês, que preservaram o seu talento para a posteridade e permitiram que as gerações subseqüentes pudessem apreciar as qualidades desse grande artista.
Jules Eugène Louis Jouvet nasceu em Crozon, na Bretanha em 24 de dezembro de 1887. Órfão de pai aos 14 anos, o adoslecente foi morar com sua mãe na casa de um tio em Rethel, nas Ardenas. Sua família queria que ele fosse farmacêutico, mas sua vocação era para o teatro. A partir de 1904, Jouvet estuda na faculdade em Paris e, paralelamente, presta concurso para o Conservatório de Arte Dramática, tendo sido reprovado três vezes.
Em 1913, com seu diploma de farmacêutico no bolso, Jouvet é contratado, juntamente com seu amigo Charles Dullin, por Jacques Coupeau, diretor do Théâtre du Vieux-Colombier,
Em 1922, após ter servido como enfermeiro de ambulância durante a Primeira Guerra Mundial, Jouvet começa sua carreira de diretor, instalando sua própria companhia, a Comédie des Champs Elysées, onde obteve grande sucesso com a peça “Knock ou le triomphe de la médecine” de Jules Romains.
Gaston Baty, Charles Dullin, Georges Pitoeff e Louis Jouvet fundam em 1927 uma associação de ajuda mútua, o “Cartel des Quatre”, que durará até 1940, com o objetivo de “fazer com que o teatro crie uma poesia que lhe seja própria e encenar autores contemporâneos”.
Em 1928, Jouvet conhece Jean Giraudoux e, a partir de 1935, dirige o l’Athénée, onde triunfa com as peças de Molière, de Giraudoux (“La guerre de Troie n’aura pas lieu”, “Electre”, “Ondine”, etc.) e diversas outras do repertório clássico.
Apaixonado pelo teatro, Louis Jouvet não cessa de transmitir esta paixão, lecionando no Conservatório desde 1934. Cioso de sua independência, ele recusou o posto de administrador da Comédie Française, temendo sem dúvida perder a sua liberdade.
Em junho de 1941, no contexto da guerra e da ocupação alemã, Jouvet e sua companhia partem para a América do Sul, chegando ao Rio de Janeiro, vinte dias depois, para a estréia da temporada. A tournée, prevista para durar pouco tempo, recebeu de início o patrocínio do governo de Vichy e posteriormente foi apoiada pelas forças da Resistência, tendo durado quase quatro anos. Apresentando-se por vêzes, em condições bastante precárias, Jouvet e sua troupe viveram situações difíceis, iguais àquelas por que passam os grupos mambembe.
Quem quiser saber mais sobre esse período da carreira de Jouvet procure na internet a interessantíssima monografia de Heloisa Pontes, “Louis Jouvet e Henriette Morineau, o impacto de suas presenças na cena teatral brasileira”, de onde colhemos os dados acima transcritos.
Jouvet voltou para a França em 1945 e retomou suas atividades no l’Athénée, que depois mudou o seu nome para l’Athénée Louis Jouvet. Ali ele criou “La Folle de Chaillot” e no dia 30 de julho de 1950 recebeu a Legion d’honneur.
Doente do coração, Jouvet morreu no dia 16 de agosto de 1951 em conseqüência de um enfarto no seu teatro, quando ele dirigia um ensaio da peça “The Power and the Glory” de Graham Greene.
Em 1932, aos 45 anos de idade Jouvet penetrou com circunspecção nos estúdios da Paramount em Saint Maurice / Joinville, para personificar Topaze ao lado de Edwige Feuillère. Ele faria 32 filmes (dos quais eu tive a sorte de ver 25 – não conheço: Mister Flow /1936, A Marca do Fogo / Forfaiture / 1937, Ramuntcho / 1937, O Drama de Shanghai / Le Drame de Shanghai / 1938, Éducation de Prince / 1938, Sérénade / 1939, e Loucuras de uma Época / Lady Paname / 1948, mas ainda tenho esperança de vê-los).
Lembro-me muito bem de todos os personagens que ele interpretou nas telas nesses filmes que pude ver: Auguste Topaze, humilde professor em Topaze / 1932 (Dir: Louis Gasnier), doutor Knock em Knock (Dir: Louis Jouvet, Roger Goupillières) / 1933, capelão em A Quermesse Heróica / La Kermesse Héroique (Dir: Jacques Feyder) / 1935, Simonis, agente alemão em Mademoiselle Docteur / Salonique, nid d’espions ou Mademoiselle Docteur (Dir: G. W. Pabst), barão Débile, aristocrata arruinado em Basfonds / Les Bas-Fonds / 1936 (Dir: Jean Renoir), Pierre Verdier, chamado de Jo, advogado que se tornou chefe de uma quadrilha de assaltantes em Um Carnet de Baile / Un Carnet de Bal / 1937 (Julien Duvivier), Archibald Sope, arcebispo desconfiado e hipócrita em Família Exótica / Drôle de Drame / 1937 (Dir: Marcel Carné), Roederer em A Marsellhesa / La Marseillaise / 1937 (Dir: Jean Renoir), o chantagista Rossignol em Pecadoras de Tunis / La Maison du Maltais / 1938 (Dir: Pierre Chenal), comissário Calas em L’Alibi / 1938 (Dir: Pierre Chenal), M. Lambertin, professor de teatro em Entrée des Artistes / 1938 (Dir: Marc Allégret), o imponente e egoísta Saint-Clair, ex-Don Juan agora no retiro de velhos artistas em La Fin du Jour / 1938 (Dir: Julien Duvivier), M. Edmond, o rufião de Hotel do Norte / Hotel du Nord / 1938 (Dir: Marcel Carné), Georges, cocheiro da charrete fantasma em O Fantasma da Esperança / La Charrete Fantôme / 1939 (Dir: Julien Duvivier), Mosca em Volpone / Volpone / 1940 (Dir: Maurice Tourneur), Pierre Froment (o pai) e seu filho Félix em França Eterna / Untel Père et fils / 1940 (Dir: Julien Duvivier), Jean-Jacques, diretor de uma companhia de balé em Un Revenant / 1946 (Dir: Christian-Jaque), Gérard Favier, compositor célebre em Les Amoureux sont seuls au Monde / 1947 (Dir: Henri Decoin), M. Dupon, modesto empregado de uma fábrica de botões e seu sósia, Manuel Ismora, um ladrão audacioso em Estranha Coincidência / Copie Conforme / 1947 (Dir: Jean Dréville), inspetor Antoine em Crime em Paris / Quai des Orfévres / 1947 (Dir: Henri-Georges Clouzot), inspetor Carrel em Entre Onze e Meia-Noite / Entre Onze Heures et Minuit / 1948 (Dir: Henri Decoin), Monchablon, o pitoresco diretor de uma companhia de teatro ambulante em Miquette et sa Mère / 1949 (Dir: Henri-Georges Clouzot), Jean Girard, ex- prisioneiro de guerra em um esquete de Retour à la Vie / 1949 (Dir: Henri-Georges Clouzot), doutor Knock em Knock / 1951 (Dir: Guy Lefranc), inspetor Ernest Plonche em Romance Proibido / Une Histoire d’Amour / 1951 (Dir: Guy Lefranc).
Com um corpo longilíneo e um jeito de andar meio arrastado, Jouvet hipnotizava as platéias com uma maneira de atuar marcada antes de tudo por uma dicção sincopada. Esta singularidade o distinguia imediatamente (pode-se dizer a mesma coisa da voz de Sacha Guitry ) e foi em grande parte responsável pela sua celebridade.
Algumas cenas inesquecíveis do grande ator: a conversa entre Débile e o ladrão seu amigo (Jean Gabin) quando, deitados na relva, contam suas vidas em Basfonds; o célebre diálogo enigmático entre o arcebispo de Bedford e Molyneux (Michel Simon) em Família Exótica (“Eu disse bizarro, bizarro? Como é estranho … (…) Eu disse bizarro, como é bizarro”); o confronto entre o astucioso inspetor Calas e Winkler (Erich Von Stroheim), o assassino arrogante e zombeteiro em L’Alibi; Pierre Verdier em Um Carnet de Baile murmurando melancolicamente os versos de Verlaine, que ele dizia outrora para a mulher amada; o sermão que o professor Lambertin passa para os tios rabugentos em Entrée des Artistes, defendendo a causa de sua discípula na lavanderia: “Lavar em família a roupa suja dos outros, você chamam isso de profissão?”; em La Fin du Jour uma velha atriz que está no asilo, mostra a Saint-Clair o retrato do filho, lhe revela que ele é o pai, e que o rapaz morreu. Saint-Clair parece se comover e pergunta:”Quantos anos tinha?”. “Vinte e oito anos”, ela responde. “A idade de um jovem galã”, diz ele secamente e logo se afastando; e a mais famosa de todas em Hotel do Norte. Depois de uma briga, Edmond diz para Raymonde (Arletty), a prostituta que “trabalha” para ele: “Preciso mudar de atmosfera, e minha atmosfera é você”. Incapaz de compreender o que ele quis dizer, Raymonde toma a palavra atmosfera como um insulto e responde, exagerando as vogais abertas com seu estridente sotaque parisiense: “Atmosfera!Atmosfera! Eu tenho cara de atmosfera?”. São apenas alguns exemplos.
Louis Jouvet sempre esteve impecável em qualquer papel, mas o meu preferido é o do inspetor Antoine em Crime em Paris, uma das obras-primas de Henri-Georges Clouzot. Neste filme, Jenny Lamour (Suzy Delair), cantora de music-hall, é casada com Maurice Martineau (Bernard Blier), que a acompanha ao piano. Jenny aceita jantar com Brignon (Charles Dullin), velho produtor libidinoso que lhe prometera um emprego no mundo do cinema. Ao saber disso, o ciumento Maurice forja um álibi e corre para matá-los. Porém ele encontra o velho morto e foi Jenny que o matou. Pelo menos é isso que Jenny conta para sua amiga Dora, uma fotógrafa, que tem por ela um amor sem esperança. O inspetor Antoine investiga e, naturalmente, as suspeitas recaem sobre Maurice.
Durante o inquérito policial, desfila uma galeria de tipos humanos interessantes que são observados pelo lúcido inspetor. Ele educa um menino negro (“única lembrança trazida das colônias além do impaludismo”) e esconde sua humanidade sob uma máscara de frieza e de ironia. É respeitoso com seus superiores, jovial com sua equipe, ameaçador com as testemunhas e interrogador paciente (às vezes brutal). Antoine nunca conseguiu ser promovido a comissário, não por ser incompetente, mas simplesmente porque não possuía a postura necessária. A certa altura da narrativa, depois de ouvir Jenny lamentando-se de sua infância difícil, o inspetor retruca sarcasticamente: “Meu pai morava num belo castelo. Ele era um lacaio e pago para limpar as sujeiras dos outros. Eu seguí os seus passos”. Para compor um tipo como este, a arte de Jouvet chegou ao auge.
Thanks Evie