Arquivo mensais:março 2010

OS WESTERNS DE ANTHONY MANN

Conservando personagens e situações clássicas do western e dando-lhes um enfoque “adulto”, Anthony Mann manteve a integridade do gênero e, ao mesmo tempo, revitalizou-o. Foi no western que, unindo temas, estrutura e estilo, produziu suas obras mais pessoais.

Os cinco filmes que fez com James Stewart (Winchester 73 / Winchester 73 / 1950, E o Sangue Semeou a Terra / Bend of the River / 1952, O Preço de um Homem / The Naked Spur / 1953, Região do Ódio / The Far Country / 1954, Um Certo Capitão Lockhart / The Man from Laramie / 1955), criaram um novo tipo de herói que é um personagem próximo do mito e da tragédia grega e está, igualmente, no centro de outros grandes westerns de Mann (O Caminho do Diabo / Devil’s Doorway / 1950, Almas em Fúria / The Furies / 1950, O Tirano da Fronteira / The Last Frontier / 1956, O Homem dos Olhos Frios / The Tin Star / 1957 e O Homem do Oeste / Man of the West / 1958. É um sujeito comum, vulnerável, obcecado pelo passado e pelo desejo de vingança ou de redenção, cujo código moral não está de acordo com a sociedade. Apresenta geralmente muita similaridade com o vilão que vem a ser um reflexo dele mesmo. Tem a consciência de que vive num mundo violento e precisa preparar-se para enfrentá-lo. Não se deixa dominar pelos outros. Age com forte determinação e coragem, vencendo tremendos obstáculos – longas distâncias a serem percorridas, ambientes hostís, isolamento, os mais dilacerantes sentimentos físicos – , para conseguir atingir seus objetivos.

Outras características dos westerns de Mann são a simplicidade e a sensibilidade visual, aprendidas com um mestre inigualável. “O diretor que mais tenho estudado – meu diretor favorito – é John Ford. Em um só plano ele apresenta, mais rápido do que qualquer outro, o ambiente, o conteúdo, o personagem; Ford tem a maior concepção visual das coisas e eu acredito nisso. O choque de um só pequeno plano que possa fazer-nos entrever toda uma vida, todo um mundo, é muito mais importante do que o mais brilhante dos diálogos”.

Dentro deste conceito, a paisagem desempenha um papel crucial na obra de Mann, sendo sempre captada pelo cineasta, com alma de arquiteto ou geômetra, em magníficas composições plásticas. Ele sabe dar aos suntuosos panoramas um tratamento funcional, mantendo constante relação dramática entre exteriores e personagens. Como disse um crítico francês, a natureza em Mann é o contraponto das aventuras humanas.

Tal como em Flechas de Fogo / Broken Arrow / 1950, realizado por Delmer Daves no mesmo ano, porém lançado antes, O Caminho do Diabo foi corajosamente favorável à causa indígena, numa época em que era difícil assumir esta atitude no Cinema americano. Lance Poole (Robert Taylor), pele-vermelha da tribo soshone, condecorado por bravura durante a Guerra Civil, retorna à terra natal no Wyoming, onde enfrenta o ódio e a discriminação. Instigados por um oportunista (Louis Calhern), criadores de ovelhas pretendem desalojá-lo do seu rancho de criação de gado, travando-se uma luta feroz, ao fim da qual o índio, mortalmente ferido, se entrega às forças da cavalaria, convocadas para impor a ordem. Além da denúncia à injustiça social e ao preconceito, evidente inclusive no relacionamento do protagonista com uma advogada (Paula Raymond), há o conflito de identidade refletido nos trajes híbridos que ele usa. Todos esses aspectos foram expostos sem subterfúgios.

Apesar da intriga ser de fundo realista e transcorrer na maior parte em exteriores, Anthony Mann optou pelo estilo visual noir com composições – o funeral do velho chefe numa gruta iluminada pelos clarões das tochas, os enquadramentos na cena da provocação contra os índios no saloon – cuidadosamente preparadas numa fotografia contrastada.

A interpretação sóbria e eficicente de Robert Taylor, acentuando o caráter humano do personagem, a vivacidade das cenas de batalha – os índios atacando do alto das montanhas, arremessando bastões de dinamite nos toldos das carroças e pulando selvagemente dos cavalos para as costas dos adversários enquanto o rebanho é atropelado pelas explosões – são outros traços distintivos da obra de estréia do cineasta, no gênero com o qual sentiu, desde logo, a maior afinidade.

Almas em Fúria é um western freudiano sobre as relações entre a heroína, Vance Jeffords (Bárbara Stanwyck) e seu pai, T.C. Jeffords (Walter Huston), latifundiário do Novo México. Ao ser expulsa de casa, após ter desfigurado com uma tesoura o rosto da madrasta (Judith Anderson), que viera usurpar o lugar de Vance na imensa propriedade – simbolicamente denominada “As Fúrias” -, ela procura refúgio junto a um amigo de infância mexicano (Gilbert Roland); porém o pai cerca o reduto onde ele vive com a mãe e os irmãos e manda enforcar o rapaz. A filha jura então tomar a fazenda do velho, o que consegue, com a ajuda de um antigo pretendente, Rip Darrow (Wendell Corey), também interessado na vingança, por outros motivos. Reconhecendo a derrota, o pai faz as pazes com a filha, mas vem a ser morto pela mãe (Blanche Yurka), cuja morte havia ordenado.

A complexidade do roteiro, desenvolvido de modo fragmentário e indisciplinado, faz o filme parecer mais longo do que realmente é, porém Mann mantém a atmosfera dramática durante todo o desenrolar da narrativa. A tensão é realçada nos momentos de agressão à madrasta e do tiroteio no cerco à família dos mexicanos no alto do morro, fotografada com contrastes de claro-escuro e efeitos de silhueta. Mann teve um grande apoio do elenco, todo ele irrepreensível, destacando-se Walter Huston e Bárbara Stanwyck pela maior intensidade dos respectivos papéis, sendo particularmente notáveis as cenas íntimas entre ambos, quando se manifesta o complexo de Electra que domina a heroína.

Walter Huston e Barbara Stanwyck em Almas em Fúria

Winchester 73 começa no dia 4 de julho de 1873, em Dodge City. Lin MacAdam (James Stewart) encontra finalmente Dutch Henry (Stephen McNally), que vinha perseguindo há algum tempo. Porém, como o xerife local, o famoso Wyatt Earp (Will Geer) confisca todas as armas, o acerto de contas fica para uma outra oportunidade. Lin e Dutch participam de um concurso de tiro, cujo prêmio é uma Winchester 73, o fuzil mais aperfeiçoado da época, muito cobiçado no Oeste. Lin ganha a disputa, mas Dutch rouba-lhe a carabina e foge da cidade. Lin e o amigo High Spade (Millard Mitchell) vão atrás de Dutch, enquanto a Winchester passa sucessivamente de suas mãos para as de um traficante, Joe Lamont (John McIntire), um chefe indígena, Young Bull (Rock Hudson), um covarde, Steve Miller (Charles Drake) e um assaltante de bancos, Waco Johnny (Dan Duryea), voltando depois à posse de Dutch. Lin alcança Dutch e os dois se defrontam num duelo, revelando-se então que eram irmãos e Dutch havia matado o pai. A trama episódica e circular reúne, com virulência e autenticidade, todos os tipos tradicionais do gênero, ligando o destino dos numerosos participantes do drama e ensejando uma meditação sobre a violência – as pessoas que se apoderam da carabina de alto poder de destruição morrem, porque só a desejavam para matar. A violência é acentuada ainda pelo caráter trágico da relação familiar entre vilão e herói. Aquí, como em vários outros westerns de Mann, encontra-se um indivíduo amargurado e raivoso, movido pelo ódio.

Além do admirável plano-sequência inicial, destacam-se as cenas do torneio de tiro, do roubo da arma por Dutch e seus capangas, da morte de Joe Lamont escondido pelo gesto de Young Bull que se coloca diante da lua, do ataque dos índios, da primeira aparição de Waco Johnny e do tiroteio final na montanha rochosa, todas as imagens compostas com uma admirável perspicácia visual.

Anthony Mann e James Stewart na filmagem

James Stewart na cena do concurso de tiro em Winchester 73

No decorrer de E o Sangue Semeou a Terra, Glynn McLintock (James Stewart), guia de uma caravana de pioneiros, salva Emerson Cole (Arthur Kennedy) de ser enforcado como ladrão de cavalos, estabelecendo-se entre os dois uma estima recíproca. Glynn já havia passado por situação semelhante e, apesar de suas suspeitas, espera que Cole, como ele próprio, se regenere. Após um ataque de índios, o comboio alcança a primeira etapa, Portland, onde os colonos compram víveres que deverão ser entregues mais tarde.Um grupo de mineradores oferece cem mil dólares pelos mantimentos, mas Glynn respeita o direto dos colonos que, sem alimentação, não poderão suportar os rigores do inverno. Entretanto, Cole cede à tentação do dinheiro, desarma Glynn, deixando-o desamparado nas montanhas, e leva o carregamento. Enfrentando as maiores dificuldades, Glynn consegue seguir Cole a distância e, no momento propício, ataca-o, sucedendo uma feroz luta corpo a corpo às margens de um rio caudaloso.

Arthur Kennedy e James Stewart em E o Sangue Semeou a Terra
O roteiro entrelaça a aventura interior da busca de Glynn por uma nova identidade como um homem de bem – expondo o confronto entre sua honestidade resoluta e o cinismo realista de Cole – com o esforço épico dos pioneiros para chegarem até o local, onde se implantará a colônia agrícola, explicitando-se o tema do dever para com a coletividade. Mann acentua primeiro a afinidade dos caracteres de Glynn e Cole e depois os coloca em choque; Glynn quer rejeitar o passado compartilhado com Cole e vislumbra-se a “estrutura da ressonância” entre herói e vilão, fundamental na filmografia do diretor.

A ação transcorre quase que exclusivamente nos deslumbrantes cenários perto do rio Columbia e do monte Hood, no Oregon, fotografados com lirismo virgiliano. O ritmo da narrativa acompanha o deslocamento da longa fila das carroças e do rebanho através do amplo panorama , sendo porém continuamente avivado por cenas empolgantes, entre elas, a saída dos três companheiros do saloon (o terceiro, um jogador, interpretado por Rock Hudson) com as armas em punho e a expedição noturna de Glynn e Cole, com as facas nos dentes para atacar os índios, ambas admiravelmente dirigidas.

O Preço de um Homem inicia-se quando, disfarçado de xerife, Howard Kemp (James Stewart) caça o fora-da-lei Ben Vandergroat (Robert Ryan), visando a recompensa de cinco mil dólares, estipulada para a captura do bandido. Com o dinheiro, pretende reaver o rancho, do qual fora destituído por ocasião da Guerra Civil. Entretanto, é obrigado a aceitar a ajuda de Jesse Tate (Millard Mitchell), um velho garimpeiro e de Roy Anderson (Ralph Meeker), ex-militar de moralidade duvidosa, também interessado no prêmio. Os três conseguem prender Ben, que se refugiara no alto de um penhasco, na companhia de uma jovem órfã, Lina (Janet Leigh), filha de um ex-companheiro de assaltos. Durante a viagem até a cidade, semeada de incidentes, o malfeitor incita uma guerra de nervos entre seus guardiães, servindo-se de Lina para distrair a atenção de Kemp. Após uma tentativa frustrada de fuga, Bem convence Tate a soltá-lo, com a promessa de indicar-lhe o local de uma mina de ouro, mas, assim que se vê livre, mata-o sem piedade. Em seguida, Bem arma uma cilada para Kemp e Roy; porém, graças a Lina, que compreendera enfim o verdadeiro caráter do amigo, o plano fracassa. Abatido por Kemp, o corpo de Ben cai nas correntezas de um rio e, pensando na recompensa, Roy tenta resgatar o cadáver, sendo tragado pelas águas turbulentas. Kemp resgata o corpo, mas, diante das súplicas de Lina, o abandona. Com o apoio e o amor da jovem, constituirá uma nova vida, sem recorrer àquele dinheiro, causa de tantos crimes.

Robert Ryan, James Stewart, Janet Leigh, Millard Mitchell e Ralph Meeker  em O Preço de um Homem

O filme possui a simplicidade e o rigor de uma obra clássica, com a ação única passada num tempo e lugar determinados. Apenas cinco personagens, cujas relações e sentimentos são analisados diante dos exteriores do Colorado, magistralmente fotografados. É uma tragédia clássica em plena natureza e, ao mesmo tempo, um penetrante estudo da ambição humana, na qual estão presentes: a tendência usual do diretor de integrar o meio com os conflitos dos personagens e o tema, também recorrente, dos “irmãos inimigos” – Ben é oriundo da mesma cidade de Kemp, embora este se esforce por afastar qualquer familiaridade entre ambos – tratado pela primeira vez em Winchester 73.

No desfecho eletrizante, Kemp e Roy lutam à beira de uma correnteza, com o barulho dos golpes abafado pelo da água, cuja presença metafórica o enquadramento em câmera alta lembra constantemente. Só esta imagem bastaria para definir o estilo e pensamento de Mann, que procura sempre situar o transbordamento das paixões no esplendor sereno de um cenário natural.

Região do Ódio tem como personagens centrais o vaqueiro Jeff Webster (James Stewart) e o amigo Ben Tatum (Walter Brennan). Eles chegam com seu gado a Skagway, no Alasca, onde têm uma rixa com o “juiz” Gannon (John McIntire), que os manda prender e lhes confisca o rebanho. Pela intervenção de uma dona de saloon, Ronda Castle (Ruth Roman), os dois são libertados e, sem dinheiro, aceitam servir como guia no comboio de Ronda até Dawson, onde ela pretende abrir um novo estabelecimento. No meio do percurso, Jeff e Ben voltam a Skagway, recuperam o gado e, já em Dawson, resolvem explorar uma concessão aurífera para, com o lucro, adquirirem uma fazenda no Utah. Porém Gannon e seus asseclas vão atrapalhar os planos dos dois amigos.

Transferindo a ação do oeste americano para o Alasca, Mann expõe a dinâmica interação dos conceitos de individualismo e responsabilidade social. Obediente apenas à própria moral, Jeff a princípio não quer se envolver com os problemas dos outros e só saca do revólver ao ser pessoalmente atingido; porém, no final, compreende o valor da amizade sincera e elimina Gannon – num lance de grande astúcia – em favor da comunidade.

Fotografado com técnica apurada, no território nevado do Yukon, o filme explora mais uma vez, de maneira dialética, os personagens e a natureza grandiosa, fazendo-nos lembrar de um trecho da análise percuciente de André Bazin a respeito do senso do espaço natural por parte do diretor: “Na maioria dos westerns, e mesmo nos melhores, como os de Ford, por exemplo, a paisagem é um quadro expressionista, onde vêm se inscrever as trajetórias humanas. Em Anthony Mann é um meio.O próprio ar não se separa da terra e da água. Como Cézannne, que queria pintar o espaço aéreo, Anthony Mann faz com que a gente o sinta, não como um espaço geométrico, um vazio de horizonte a horizonte, mas como uma qualidade concreta do espaço. Quando a câmera faz um panorama, ela respira.”

Filmagem de Região do Ódio
Um Certo Capitão Lockhart apresenta um novo herói taciturno com ânsia implacável de vingança. O Capitão Will Lockhart (James Stewart) sai de Forte Laramie e chega a Coronado, em busca do responsável pela venda de armas aos apaches que massacraram seu irmão. Ali, entra em conflito com Alec Waggonman (Donald Crisp), poderoso proprietário de terras que, prestes a ficar completamente cego, pensa em dividir o imenso domínio territorial entre o filho legítimo, Dave (Alex Nicol), rapaz arrogante e impulsivo, e o filho de criação, Vic Hansbro (Arthur Kennedy) capataz da fazenda, encarregado de conter as desordens do “irmão”. Com a ajuda de Kate Canaday (Aline MacMahon), vizinha e rival de Alec, e após sofrer muita violência, Lockhart descobre o homem que procurava, ensejando os momentos culminantes no alto de uma colina.

Cathy O' Donnell e James Stewart em Um Certo Capitão Lockhart

A figura trágica do velho, de inspiração shakespereana, pois a analogia com o Rei Lear é evidente – Alec, cego, pensando em repartir o império, não percebe que é o filho adotivo quem mais o ama e pratica atos insensatos, provocando sua própria queda – dá enorme dramaticidade ao filme, que apresenta, sob o plano formal, uma inteligente utilização do CinemaScope.

Mann contradiz todas as hipóteses pessimistas levantadas por ocasião do advento deste formato, tais como a impossibilidade dos primeiros planos, a dificuldade dos movimentos de câmera e a morte da montagem. A seqüência brutal nas salinas, por exemplo, mostra os planos bem próximos do rosto de Lockhart, capturado no laço e arrastado por sobre as cinzas da fogueira, intercalado naturalmente com outras tomadas mais gerais. Todos os enquadramentos são sabiamente construídos, como, na cena do enterro, o desenho de um imenso triângulo, cujo vértice é constituído pela cabeça do assassino e, depois do funeral, a silhueta negra do ancião desesperado, que dá tiros a esmo.

Alex Nicol e James Stewart em Um Certo Capitão Lockhart

Em O Tirano da Fronteira, três caçadores, Jed Cooper (Victor Mature), Gus Gus (James Whitmore) e Mungo (Pat Hogan), roubados pelos índios, não têm outra alternativa senão a de servirem de batedores de uma guarnição do exército. Jed não se adapta á disciplina, nem aceita as intenções do novo comandante, Frank Marston (Robert Preston), militar ambicioso e arrivista que fora destacado para um forte tão distante por ter sacrificado inutilmente seus homens num combate durante a Guerra de Secessão. Com a idéia fixa da necessidade de uma vitória extraordinária, Marston não hesita em repetir o fato leviano, ordenando um ataque louco contra os índios que Jed em vão tenta impedir. Marston é um dos primeiros a morrer, mas Jed consegue salvar o resto da tropa.

Robert Preston, Victor Mature, Guy Madison e James Whitmore em O Tirano da Fronteira

Western rousseauniano, inspirando-se no episódio histórico, desmitificado, do General Custer, ao sublinhar a obstinação do comandante, tem como tema a crítica da civilização feita por um selvagem. Jed percebe logo que todos odeiam Marston, mas, quando resolve matá-lo, surpreende-se com o fato de que sua decisão encontrara a maior reprovação. Este homem primitivo e pitoresco – que oferece trutas à esposa (Anne Bancroft) do Coronel, para lhe provar a afeição – é um personagem original e recebeu de Victor Mature uma interpretação primorosa. Cada plano do filme parece ter sido minuciosamente trabalhado com vistas à tela larga e os movimentos de câmera, principalmente os de grua, atingem uma eficácia ophulsiana e suscitam uma real emoção estética.

No relato de O Homem dos Olhos Frios, Morg Hickmann (Henry Fonda), ex-homem da lei que, ressentido contra a sociedade por causa de um acontecimento no passado, se torna caçador de recompensas, trazendo para o xerife Ben Owens (Anthony Perkins) o corpo de um bandido e cobrando a recompensa. Ben é novato no ofício e, depois que Hickmann o tira de encrencas, os dois ficam amigos. O homem mais velho e experiente passa então a atuar como professor e conselheiro do rapaz, até que este adquire a confiança necessária para exercitar seu trabalho, dominando sozinho Bart Bogardus (Neville Brand), o maior desordeiro da cidade. Ao orientar o Xerife principiante, Hickmann se reeduca e a sua lassidão se transforma em ardor. Ben lhe permite recuperar o gosto de ser aquilo que era.

Concentrando-se m

Anthony Perkins e Henry Fonda em O Homem dos Olhos Frios

ais na caracterização dos personagens de Hickmann e Ben e na influência mútua entre os dois, Mann não se preocupa tanto com a paisagem, que é bastante rara, seca e árida, quase desolada, assim como a sua direção é a mais despojada possível. O que não impede de nascerem cenas excitantes como o assalto à diligência, o assassinato do médico (John McIntire) – descoberto morto dentro da charrete quando todos se preparavam para homenageá-lo -, a captura dos dois malfeitores (Lee Van Cleef, Peter Baldwyn) e a turba agitada por Borgadus querendo linchá-los, todas cenas forjadas com notável intuição cinematográfica.

O Homem do Oeste, último grande western de Anthony Mann, é uma súmula dos temas prediletos do diretor. Em Crosscut, Link Jones (Gary Cooper), é um aparentemente ingênuo e tímido fazendeiro, que toma o trem para Fort Worth, com a incumbência de contratar uma professora para a comunidade em que vive com a família. Descobrindo sua missão, o vigarista Sam Beasley (Arthur O’ Connell) planeja um golpe, apresentando-lhe uma cantora de saloon, Billie Ellis (Julie London) como professora. Entretanto, o trem é roubado e os três acabam caindo nas mãos dos bandidos, cujo líder, Dock Tobin (Lee J. Cobb), vem a ser tio de Link, que havia sido membro da quadrilha. Fazendo o tio pensar que voltara para prosseguir na via do crime, na qual o velho o introduzira, Link vai aos poucos eliminando cada um dos bandidos. Até o climax, surgem vários incidentes violentos, entre eles a morte de Sam e dois stripteases antológicos: um, da mulher, forçada a tirar a roupa na frente dos bandidos e de Link, imobilizado pela faca que um deles lhe aperta na garganta; outro, masculino, quando Link, para vingar a humilhação de Billie, espanca duramente o degenerado que a obrigara a despir-se e depois começa a arrancar, peça por peça, as vestes do adversário.

Gary Cooper em O Homem do Oeste

Todo o esforço do herói é para manter a condição humana que conquistou ao regenerar-se. Sabe que não pode se deixar corromper pelas forças do mal, encarnado pelo patriarca demente e, para se desprender de suas raízes, Link tem que matar “o pai” e os “primos”, usando os métodos cruéis que aprendera com eles. O próprio Tobin compreende que seu tempo já passou -daí o símbolo da cidade fantasma – e incita Link a executá-lo, estuprando a mulher que pensa pertencer ao sobrinho.
Como Cimarron / Cimarron / 1960 não é rigorosamente um western e sofreu várias mutilações, podemos dizer que, com esta obra-síntese, Anthony Mann encerrou sua trajetória no gênero, no qual se tornou, com a colaboração de excelentes roteiristas, um dos realizadores mais expressivos.

A ÉPOCA DE OURO DO CINEMA MEXICANO

A época de ouro do Cinema Mexicano coincidiu com as administrações de Lázaro Cardenas (1934-1940), Manuel Ávila Camacho (1940-1946) e Miguel Alemán Valdés (1946-1952) e estava relacionada a um crescimento econômico e prosperidade sem precedentes no país.

Pedro Armendáriz e Dolores del Rio em Flor Silvestre

Outro fator que contribuiu para esse período de lucro e produtividade foram os benefícios do alinhamento do México com os Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial em virtude do afundamento de navios petroleiros mexicanos pelos alemães. Os americanos ajudaram a nação vizinha a incentivar a indústria do cinema, fazendo empréstimos ou investimento direto, fornecendo-lhe filme virgem, equipamentos e assessoramento técnico a um bom preço.

Graças a essa ajuda americana (que foi negada por motivos políticos às indústrias de cinema da Espanha e da Argentina) a indústria de cinema mexicana tornou-se a maior produtora de filmes de língua espanhola, desafiando significativamente a hegemonia de Hollywood no ramo da exibição pela América Latina, pois a maioria dos filmes americanos realizados entre 1940 e 1945 refletiam um interesse por temas de guerra, alheios ao gosto latino e a. escassa produção européia tampouco representava uma concorrência considerável.

Promoção de Flor Silvestre

Paralelamente, no período do “Cine de Oro”, o governo mexicano se interessou mais pelo cinema, na medida em que era preciso proteger um patrimônio cultural e econômico. Assim, em 1942 foi fundado o Banco Cinematográfico, para facilitar o financiamento da produção de filmes.

A consolidação da indústria de cinema mexicana foi também produto de um star system, cujos atores e atrizes até hoje são reconhecidos internacionalmente como, por exemplo, Maria Felix, Mario Moreno “Cantinflas”, Pedro Armendáriz, Dolores Del Rio e Arturo de Córdova.

3 Pedro Armendáriz e Dolores del Rio em Maria Candelaria

Gabriel Figueroa e Dolores Del Rio

Pedro Armendáriz e Dolores Del Rio em Maria Candelaria

No ano passado, conseguí cópias em dvd de alguns filmes dos “anos dourados” – Flor Silvestre / Flor Silvestre / 1944, Maria Candelária / Maria Candelária / 1944, As Abandonadas / Las Abandonadas / 1945, Coração Torturado / Bugambilia / 1945, Enamorada / Enamorada / 1947, Rio Escondido / Rio Escondido / 1948, Maclovia / Maclovia / 1949, A Malquerida / La Malquerida / 1950 -, que não conhecia porque, quando passaram no Brasil, eu era ainda muito jovem e me interessava mais pelas comédias do Cantinflas. Por coincidência, todos esses filmes foram dirigidos por Emilio Fernández e fotografados por Gabriel Figueroa, os expoentes daquele período glorioso da cinematografia mexicana.

Em 1943, Fernández formou pela primeira vez a equipe com o fotógrafo Figueroa, o roteirista Mauricio Magdaleno e os atores Dolores Del Rio e Pedro Armendáriz. Este grupo de trabalho, depois enriquecido pela presença de Maria Felix, seria o responsável pela maioria dos filmes que deram fama mundial ao cinema mexicano.

Pedro Armendáriz e Dolores Del Rio em As Abandonadas

Fernández, apelidado de “El Índio” por suas raízes indígenas, era um bom diretor, porém foi sem dúvida o extraordinário estilo visual de seu diretor de fotografia Figueroa que mais distinguiu os filmes da dupla. Fernández costumava se vangloriar dizendo: “Só existe um México: aquele que eu inventei” – mas foi a sensibilidade altamente dramática de Figueroa pela terra que engendrou esta invenção.

Sôbre o “estilo Figueroa”, um comentarista mexicano sintetizou-o com perfeição: “ele se impregnou do nacionalismo cultural da época, construindo com um marcado senso plástico um México sublime, onde homens com traje de vaqueiro e mulheres com xales, céus dramáticos, claro-escuros espetaculares e paisagens, nos submergem numa realidade idílica e edificam um país que, sem ser legítimo na sua totalidade, nos outorgou uma identidade”.

Pedro Armendárize Dolores Del Rio em Coração Torturado

A criação do estilo cinematográfico mexicano clássico de Fernandez e Figueroa sofreu influência do cinema de Eisenstein, das aulas de iluminação e composição do diretor de fotografia Gregg Toland – de quem Figueroa foi aluno ao conseguir uma bolsa para estudar em Hollywood – e da obra dos pintores David Alfaro Siqueiros, Diego Rivera e José Clemente Orozco. Figueroa mantinha amizade com os três e admitidamente tomou emprestado elementos pictóricos dos muralistas.

Fernández chamava seus filmes de “autos sacramentais de mexicanidade”. Ele desejava mexicanizar os mexicanos, ou seja, mudar aquela imagem tão divulgada pelo cinema americano de um mexicano preguiçoso, bêbado, sanguinário e sem caráter. Então a figura do indígena, heróico e nobre, completamente distante da realidade em que viviam as comunidades indígenas mexicanas daquele tempo, passou a representar um México mais digno, que poderia ser mostrado ao mundo inteiro com altivez e orgulho.

Maria Felix e Emilio Fernández

Maria Felix e Emilio Fernández

A época de ouro do cinema mexicano atingiu o auge quando Maria Candelária ganhou o Grande Prêmio no Festival de Cannes em 1946.

Trágica história de proporções épicas, o filme passa-se pouco antes do início da Revolução Mexicana de 1910 e sua ação se localiza espacialmente em Xochimilco, sítio dos famosos jardins flutuantes, considerados uma obra-prima da engenharia hidráulica do tempo do Império Azteca.

Uma maldição pesa sobre Maria Candelária (Dolores Del Rio), cuja mãe tinha a reputação de ser uma prostituta. Ajudada pelo noivo, Lorenzo (Pedro Armendáriz), ela tenta ganhar a vida vendendo as flores cultivadas no seu jardim. Ambos têm que se defender da hostilidade dos aldeões, que não perdoam a Maria a sua origem. O mais furioso é o comerciante Don Damian (Miguel Inclan), que vive cobrando as dívidas da jovem e não hesita em lhe negar a quinina necessária para curá-la da malária. Lorenzo rouba a quinina e é preso. Maria é forçada a pedir a intervenção de um pintor espanhol, que está de passagem pela aldeia e, em troca de seu auxílio, consente em ter seu rosto retratado por ele; porém o povo pensa ter sido também Maria quem serviu de modelo para o corpo nu representado na tela. Ela é perseguida pela população, que a apedreja diante da prisão onde se encontra Lorenzo.

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A maior parte do filme se desenrola em exteriores e neles se situam as suas melhores seqüências: a chegada de Maria no barco coberto de flores, a hostilidade muda dos aldeões, o batismo dos animais e o grande clímax quando a população, carregando tochas acesas persegue Maria através do milharal e finalmente ocorre o linchamento.

Gostei de todos os oito filmes de minha retrospectiva particular, mas foi Maria Candelária o que mais me impressionou.

DOLORES DEL RIO

Dolores Del Rio (1905-1983) foi uma estrela de Hollywood durante o período do cinema silencioso e na fase sonora clássica e, posteriormente, uma atriz importante no Cinema Mexicano.

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Maria de los Dolores Asúnsolo y López Negrete nasceu em Durango, México. Seu pai era banqueiro e perdeu tudo por causa da Revolução Mexicana. Em 1921, com apenas 16 anos, Dolores casou-se com o escritor Jaime Martinez Del Rio, dezoito anos mais velho do que ela. Em 1924 foi descoberta pelo diretor de cinema americano Edwin Carewe que, extasiado pela beleza da jovem, prometeu trabalho para o casal em Hollywood; Dolores como atriz e Jaime como roteirista.

Com o sobrenome do marido, Del Rio, Dolores fez sua estréia em As Melindrosas / Joanna / 1925, dirigido por Carewe. O estrelato veio rápido com Dolores no topo dos créditos de vários filmes de prestígio, destacando-se Sangue por Glória / What Price Glory / 1926, A Dança Rubra / The Red Dance / 1928 e Ouro / Trail of the 98’ / 1928, os dois primeiros realizados por Raoul Walsh e o último por Clarence Brown. Sobre estes eu posso falar, porque tive oportunidade de vê-los.

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Baseado numa peça muito popular de Laurence Stallings e Maxwell Anderson, Sangue por Glória combina maravilhosamente comédia e romance com cenas de guerra, concentrando-se mais na rivalidade de dois fuzileiros navais, sargentos Flagg (Victor Mclaglen) e Quirt (Edmund Lowe), pelo amor de uma campesina francesa chamada Charmaine (Dolores Del Rio).

A Dança Rubra, melodrama tendo como pano de fundo a Revolução Russa, traz Dolores de novo como uma campesina, Tasia, que se torna dançarina e se casa com o Grão Duque (Charles Farrell), que ela deveria assassinar. O filme vale sobretudo pelo trabalho das câmeras sob o comando de Raoul Walsh e pelos cenários estilizados e expressionistas do diretor de arte Ben Carré.

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Para mim, Ouro é o melhor dos três. Tem como tema a epopéia da descoberta do ouro no Klondike em 1898, que atraiu para o Alaska um punhado de caçadores de fortuna de todos os cantos da América, entre eles, Berna (Dolores Del Rio) e seu avô (Cesare Gravina) e o jovem Larry (Ralph Forbes), por quem ela se apaixona.

Clarence Bown conduz a aventura com a devida dimensão épica, criando cenas espetaculares relacionadas com os perigos daquela região gelada. Para a seqüência da tempestade de neve e da travessia do rio caudaloso, quando o filme passou nos cinemas, a tela foi alargada em duas vezes o seu tamanho normal, num sistema intitulado “Fantomscreen”, causando um impacto eletrizante.

Dos sete filmes que Dolores fez com Edwin Carewe, Ressureição / Ressurection / 1927 e Ramona / Ramona / 1928, foram muito elogiados (os comentaristas da revista Cinearte, por exemplo, deram- lhes respectivamente, notas 8 e 9), porém só conheço Evangelina / Evangeline / 1929, que saiu em dvd recentemente. A julgar por Evangelina, Carewe sabia tirar partido das paisagens naturais, compondo quadros de notável valor pictórico e explorar o lindo rosto da atriz nos close-ups.

Em 1928, Dolores se divorciou de Jaime; com ciúmes da esposa, ele foi para a Alemanha e se suicidou. Dois anos depois, ela se casou com Cedric Gibbons, o chefe do Departamento de Arte da MGM.

No cinema falado, os filmes de maior prestígio de Dolores no Brasil foram Ave do Paraíso / Bird of Paradise / 1932 e Voando para o Rio / Flying Down to Rio / 1933 (no qual sua personagem chamava-se Belinha de Rezende), sucedendo-se outros cada vez menos importantes, nos quais Dolores era quase sempre relegada a papéis exóticos por causa de seu sotaque latino. Entre esses filmes “menores” eu gostaria de chamar a atenção para dois deles, que pude ver há pouco tempo e que são geralmente esquecidos, inclusive por vários autores de filmografia da atriz: Acusada / Accused / 1936 (Dir: Thornton Freeland) e O Diabo à Solta / Devil’s Playground / 1937 (Dir: Erle C. Kenton).

Flying down to rio

dolores del rio, douglas fairbanks jr_-- accused

dolores del rio, richard dix-- devil's playground

Em Accused, produção inglesa, Tony (Douglas Fairbanks Jr.) e Gaby (Dolores Del Rio) formam uma dupla de dançarinos. Eles fazem um número musical que termina com Gaby atirando uma faca nas costas de Tony; mas ele sai ileso, porque usa um colete de aço. A certa altura da trama, Gaby vem a ser acusada da morte de uma colega do teatro que estava dando em cima de Tony, pois uma de suas facas foi encontrada no local do crime. Enquanto transcorre o julgamento, Tony sai à procura do verdadeiro culpado. Dolores e Fairbanks Jr. esbanjam fotogenia e a narrativa tem a costumeira eficiência britânica.

Em O Diabo à Solta, cujo roteiro foi escrito por Liam O’Flaherty, Jerome Chodorov e Dalton Trumbo, Dolores é Carmen, “mariposa” de um cabaré de Manila, que quase destrói a amizade entre dois mergulhadores da Marinha (Richard Dix, Chester Morris). A história não era novidade, pois tratava-se da refilmagem de Submarino / Submarine, realizado em 1928 por Frank Capra; porém a boa atuação de Dolores no papel de uma jovem vulgar e sedutora e o excitante clímax no submarino garantem a diversão.

Em 1940, Dolores conheceu Orson Welles. Welles apaixonou-se pela bela mexicana e ela se divorciou de Gibbons, vivendo com o grande diretor um romance que durou dois anos. Nessa ocasião, Dolores participou de um filme muito interessante, escrito por Welles e dirigido por Norman Foster, Jornada do Pavor / Journey into Fear / 1943. Este, a meu ver, foi o melhor filme de Dolores nesta fase de sua carreira nos Estados Unidos.

journey into fear

Dolores Del Rio e Orson Welles

Em 1943, Dolores Del Rio voltou para o México, para se tornar a estrela mais popular de seu país, principalmente numa série de filmes dirigidos por Emilio Fernández e magnificamente fotografados por Gabriel Figueroa, só retornando ocasionalmente a Hollywood (Domínio de Bárbaros / The Fugitive / 1947 (Dir: John Ford); Estrela de Fogo / Flaming Star / 1960 (Dir: Don Siegel), Crepúsculo de uma Raça / Cheyenne Autumn / 1964 (Dir: John Ford).

Em 1959, Dolores casou-se com Lewis A. Riley, um empresário teatral americano e em 1978, retirou-se do Cinema, para administrar a sua fortuna.

Dolores era amiga de Marlene Dietrich, que a considerava “a mulher mais bonita de Hollywood”. No tempo do cinema mudo diziam que ela era a “versão feminina de Rudolph Valentino”.

Sua beleza, pode-se dizer, perene foi motivo de muita inveja e especulação. De acordo com todas as informações recolhidas, Dolores nunca recorreu à cirurgia plástica, mantendo a aparência principalmente por meio de uma dieta diligente, inventada por ela mesma, muitas horas de sono e exercícios físicos.

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ALBERTO CAVALCANTI – PERSONALIDADE DO CINEMA MUNDIAL

Na sua longa trajetória artística, de 1923 a 1978, o brasileiro Alberto de Almeida Cavalcanti foi uma personalidade do Cinema Mundial.

Alberto Cavalcanti
Relacionou-se com: a vanguarda francesa na década de vinte; a escola documentarista inglesa nos anos trinta; o impulso da produção comercial britânica nos anos quarenta; e a tentativa industrial em São Bernardo do Campo, nos anos cinquenta. Realizou posteriormente filmes em vários países, adaptando-se sempre muito bem ao meio que freqüentava e formou discípulos em toda parte, além de se dedicar ao Teatro e à Televisão.

Cenógrafo, argumentista, produtor, diretor, especialista na montagem sonoro-visual, experimentador incansável e eclético, exercitou o talento nos mais variados gêneros cinematográficos com homogeneidade de estilo e espírito inovador, alternando-se a tendência realista e a índole fantasista.
Cav, como os colegas ingleses costumavam chamá-lo, nasceu a 6 de fevereiro de 1897 na Rua Marciana, atual Álvaro Ramos, em Botafogo no Rio de Janeiro, filho de Manoel de Almeida Cavalcanti, natural de Palmeira dos Índios, Alagoas e de Ana Olinda do Rego Rangel Cavalcanti, pernambucana de Olinda.

Em 1908, Cavalcanti entrou para o Colégio Militar, saindo no quinto ano para a Faculdade de Direito da Escola Politécnica, onde travou conhecimento com o dramaturgo Roberto Gomes, que o influenciaria bastante. Foi nesse momento que nasceu o amor pelo Teatro, logo seguido do entusiasmo pelo Cinema. “Os dramas dinamarqueses de Asta Nielsen e as comédias de Max Linder me impressionavam tanto que jamais os esqueci”, ele lembrou em certa ocasião para um repórter.
Mas eis que um incidente com o professor de Filosofia do Direito, Nerval de Gouveia, terminou numa greve dos alunos com repercussão por toda a cidade. O pai do rapaz achou conveniente mandá-lo para o exterior, até que tudo tivesse sido esquecido.

Em 1914, Cavalcanti chegou à Suíça e se matriculou na escola Técnica de Friburgo, escolhendo o curso preparatório de Arquitetura. Ainda no mesmo ano foi aprovado no exame de admissão para a escola de Belas-Artes de Genebra.

Diplomado, resolveu assistir às aulas de Deglane na escola de Belas-Artes de Paris, ouvindo depois as lições de estética de Victor Basch na Sorbonne. Em seguida, obteve emprego no escritório do urbanista Alfred Agache que, mais tarde, se ocuparia de projetos de modernização do Rio de Janeiro.
Após ter trabalhado dois anos com Agache, transferiu-se para uma firma de decoração, a Compagnie des Arts Français. Passado algum tempo, tentou ser representante dessa e de outras empresas no Brasil, abrindo um escritório da Rua do Ouvidor.

Os negócios, porém, não corresponderam à expectativa. Com o prestígio do tio, Alberto Rangel, conseguiu um posto no Consulado brasileiro em Liverpool. Antes de embarcar, viu o filme Rose France / 1919 de Marcel L’Herbier e achou que ele bem poderia utilizar um jovem cenógrafo. Escreveu para L’Herbier e, com o apoio do Cônsul Dario Freire, pôde finalmente prestar serviço ao cineasta francês. Dario pediu-lhe que tomasse conta de suas filhas, estudantes na Cidade-Luz. Uma delas, Dido, se casaria com Jean Renoir.

Em 1926, Cavalcanti estreou como diretor em Le Train sans Yeux. Os dois filmes subseqüentes, En Rade e Rien que les Heures, considerados uns dos mais importantes do movimento vanguardista, firmaram-lhe a reputação.

Rien que les heures

Sucederam-se mais alguns trabalhos e, com o advento do cinema falado, foi contratado pela Paramount, fazendo em Saint-Maurice / Joinville, versões de filmes de Hollywood. Depois disso realizou comédias de boulevard para outras produtoras e alguns curtas-metragens.
Nos anos trinta seus filmes mais conhecidos no Brasil foram a versão portuguesa do filme americano Sarah e Seu Filho / Sarah and Son / 1930, exibida com o título de A Canção do Berço e O Tio da América / Le Truc du Brésilien / 1932. Na censura brasileira o filme levou primeiramente o título de O Truque do Falso Brasileiro em Paris. A revista Cinearte (nº 370 de 1/7/1933) diz que a empresa distribuidora sofreu um blefe. Vendo a notícia de um filme com o título de Le Truc du Brésilien, dirigido por Alberto Cavalcanti, tratou imediatamente de adquiri-lo; “mas a fita não era muito simpática ao brasileiro e o título foi mudado”. Cavalcanti se ocupou também da versão francesa, Toute sa Vie, porém esta não passou no nosso país.

A Canção do Berço 1930

Le truc du bresilien

Essa fase valeu como aprendizado da técnica do som, precioso subsídio para fecundas pesquisas que levaria a efeito na Inglaterra a partir de 1934, integrando a General Post Office Film Unit (Seção de Cinema do Departamento dos Correios), sob o comando de John Grierson. A G.P.O. operava como uma equipe, todos contribuindo para cada filme e o papel de Cavalcanti foi o de ser o responsável pelas inovações e experiências.

O brasileiro estava entre os diretores que John Grierson classificava de “estetas” em oposição à sua idéia de documentário “não cinemático”, mais direto e funcional. Diferentes temas foram abordados, todos dramatizando a realidade, “para forçar o público a se interessar pelas questões essenciais do país”.

Em 1937, Cavalcanti tornou-se o responsável pela produção da G.P.O. juntamente com J. B. Holmes. Durante a guerra, a Seção de Cinema ficou sob o controle do Ministério da Informação, passando a ser conhecida como Crown Film Unit.

De suas realizações na G.P.O. como diretor, tenho predileção por Pett and Pott, We Live in Two Worlds e principalmente Coal Face, verdadeiro oratório sobre a vida dos trabalhadores nas minas de carvão com efeitos musicais e corais admiráveis. A subida dos mineiros no elevador enquanto ouvem vozes de mulheres que chamam por seus nomes é um dos grandes momentos do Cinema.

Coal Face

Em 1941, Cavalcanti assinou contrato com a Ealing Studios, administrada por Michael Balcon, insinuando-se por diversas vertentes da narrativa de ficção – parábola sobre o absurdo da guerra, comédia musical de época, drama fantástico, adaptação literária – com a mesma facilidade com que cruzava as fronteiras.

Os quatro filmes que ele fez na Ealing (Quarenta e Oito Horas / Went the day Well? / 1942; Champagne Charlie (na TV) / Champagne Charlie /1944; dois episódios de Na Solidão da Noite / Dead of Night / 1945; Nicholas Nickleby (na TV) / The Life and Adventures of Nicholas Nickleby / 1946) e os três imediatamente posteriores realizados para outras companhias (Nas Garras da Fatalidade / They Made me a Fugitive / 1947; O Príncipe Regente / The First Gentleman / 1947 e O Transgressor / For Them That Trespass / 1948) foram os melhores de sua carreira no exterior.

Quarenta e Oito Horas

Champagne Charlie

Michael Redgrave em Na Solidão da Noite

Nicholas Nickleby

Filmagem de Nas Garras da Fatalidade

Trevor Howard em Nas Garras da Fatalidade

Hoje já conheço esses sete filmes e gosto de todos eles, porém o que me surpreendeu foi O Príncipe Regente, brilhante reconstituição histórica com cenários e figurinos impecáveis e a composição de tipo deliciosa de Cecil Parker no papel do extravagante George IV da Inglaterra, quando ainda era o Príncipe de Gales.

O Príncipe Regente

Em 1949, Cavalcanti voltou ao Brasil, convidado por Assis Chateaubriand e Pietro M. Bardi para proferir uma série de conferências no Seminário de Cinema do Museu de Arte de São Paulo e acabou assumindo o cargo de produtor geral da Companhia Cinematográfica Vera Cruz.

Richard Todd em O Transgressor pode diminuir um pouquinho

Cavalcanti ajudou a instalar os estúdios da empresa e a importar material e técnicos, mas só pôde completar a produção de Caiçara, Terra é sempre Terra, um terço de Ângela e três documentários. “Tentei organizar uma estrutura realmente profissional e séria, mas sofri críticas e perseguições de toda sorte, até mesmo com absurda conotação política”, lamentou Cavalcanti para os jornalistas. O fato é que, apesar das incompreensões, a efêmera passagem de Cavalcanti pela firma de Franco Zampari auxiliou a impulsionar o desenvolvimento do cinema nacional.

Desligado da Vera Cruz, presidiu a comissão encarregada pelo Presidente Getúlio Vargas de preparar um plano para a implantação de um Instituto Nacional de Cinema, escreveu o livro Filme e Realidade e dirigiu Simão, o Caolho na Maristela e O Canto do Mar e Mulher de Verdade para a Kino filmes, da qual foi um dos fundadores, preocupando-se em abordar uma temática brasileira.

Mesquitinha e Nair Bello em Simão, o Caolho

Colé e Inezita Barroso em Mulher de Verdade

Colé e Inezita Barroso em Mulher de Verdade

Em 1954, durante o 1º Festival Internacional de Cinema no Brasil, recebeu o Prêmio Governador do Estado “pelo alcance de sua contribuição para a recuperação do cinema brasileiro”. Nesse ano, dirigiu Electra, de Sófocles na TV Record e no Teatro Leopoldo Frois.

Retornando à Europa, dividiu sua atividade entre o Cinema, o Teatro e a Televisão na Áustria, Alemanha Oriental, Espanha, Israel, Itália, Inglaterra, França e depois lecionou na Universidade de Los Angeles, Califórnia.

Cavalcanti voltou novamente ao Brasil em 1969 como membro do júri do Festival Internacional do filme Rio de Janeiro. Em 1970, deu aulas no Film Study Center em Cambridge, Massachussets e ganhou, em 1972, a American Medal for Superior Artistic Achievement.

Só retornaria outra vez à terra natal em 1976, quando conseguiu realizar a antologia Um Homem e o Cinema e publicar nova edição do seu livro. Nesta oportunidade, foi agraciado com o Troféu Coruja de Ouro-Personalidade. No ano seguinte, o British Film Institute homenageou-o com uma Retrospectiva. Cavalcanti faleceu a 23 de agosto de 1982, aos 85 anos, numa clínica da Rue de Passy em Paris, após uma crise cardíaca.

O Canto do Mar

Em 1988, foi mais uma vez lembrado no exterior com uma Retrospectiva (37 filmes) no Festival de Locarno. Nesta ocasião, escrevi para a direção do festival pedindo um catálogo e eles me enviaram o livro de Lorenzo Pellizzari e Cláudio M. Valentinetti, que tem uma excelente filmografia do cineasta. Com base no trabalho dos dois italianos e entrevistando pelo telefone Adalberto Vieira, valioso colaborador e amigo íntimo de Cavalcanti e Ruth de Souza, grande atriz brasileira, elaborei uma bio-filmografia de Alberto Cavalcanti, expandindo a de Pellizzari-Valentinetti, principalmente no que concerne a certos dados biográficos (colhidos no magnífico artigo de Hermilo Borba Filho em Anhembi, nº 37, dezembro 1953), a informações relativas aos filmes curtos feitos por Cavalcanti nos anos trinta na França e aqueles longas-metragens que realizou no Brasil, assinalando outrossim a direção de Electra na TV e no teatro, omitidas no livro citado.

Minha bio-filmografia foi publicada na revista Cinemin nº 48, tendo sido impresso um Reprint Internacional. Alí vocês encontrarão a lista completa de todos os filmes de Alberto Cavalcanti com breves comentários e as fontes mais úteis consultadas.

ANATAHAN

Até que enfim achei em Paris o dvd de The Saga of Anatahan / 1953, que lá saiu com o título de Fièvre sur Anatahan, e pude ver um filme único, obra-prima de seu realizador, Josef von Sternberg.

A derradeira realização de Josef von Sternberg inspira-se num fato real – sobreviventes de um avião de guerra japonês recusaram-se a acreditar na capitulação de seu país e passaram sete anos numa ilha deserta, até serem recolhidos por um avião americano – acrescentando um casal, cuja mulher, Keiko (Akemi Negishi), apesar da vigilância do companheiro (Tadashi Suganuma), desperta o desejo dos homens, levando-os à luta pelo poder, à deterioração moral e à morte.
Akemi Negishi e Hiroshi Kondo

A tensão cresce quando um avião cai na ilha. Os corpos dos passageiros sumiram, mas entre os destroços encontram-se pistolas, munição, fios para fazer um shamisen (tradicional instrumento de cordas) e um pára-quedas, que Keiko transforma em roupas atraentes.

A ação transcorre numa selva fantástica, constituída de gigantescas raízes de cedros, musgos e trepadeiras entrelaçados, formando sombras intrincadas, no meio das quais aparece e desaparece a jovem sensual – consagrada como “Rainha das Abelhas” por um dos que queriam possuí-la -, atiçando os instintos da vida e da morte.

Tadashi Suganume e Akemi Negishi na selva fantástica

Neste cenário propositadamente irreal, que serve como microcosmo da sociedade, o diretor – tal como explicou na sua autobiografia Fun in a Chinese Laundry (Mercury House, 1988) – faz uma experiência da psicologia indireta de massa, alertando-nos para a necessidade de “reinvestigarmos nossas emoções e a confiabilidade de nosso controle sob circunstâncias desfavoráveis”.

Instalado com toda a sua família no Japão, Sternberg realizou aquele que deveria ser o seu filme predileto com toda liberdade e em condições para ele ideais, ou seja, inteiramente dentro de um estúdio em Kyoto, onde foi construída aquela selva totalmente falsa. Isto lhe permitiu praticar uma encenação fulgurante, manejando com virtuosismo a luz e a sombra, o preto e o branco.

Um momento íntimo

Encontramos poucos exemplos na História do Cinema de um filme tão original quanto Anatahan: a voz de Sternberg, falando em inglês, cobre os diálogos, que são ditos em japonês, sem serem traduzidos por legendas. O diretor narra a história em tom de pseudo-reportagem, algumas vezes antecipando os acontecimentos, advertindo a platéia do que vai acontecer e em outras vezes contradizendo o que a gente vê. Ele relata certos episódios, tirando deles uma lição, situando-se em alguns momentos no centro do drama e logo se afastando, deixando para a câmera a incumbência de mostrar aquilo que ele não testemunhou.

A única mulher do filme foi escolhida entre as coristas de um teatro, após cada geisha de Tóquio ter desfilado diante do diretor. Três veteranos do Kabuki foram acrescentados ao elenco e o resto dos homens selecionados em escolas de dança com exceção de um, recrutado em um restaurante.

Keiko e os soldados

Além da narração em voz over, Sternberg acumulou as funções de diretor, roteirista e cameraman, revelando-se mais uma vez, um autor completo e um cineasta que tem lugar garantido entre os grandes artistas do Cinema.

A ARCA DE NÓE E DOLORES COSTELLO

Michael Curtiz esperava dirigir A Arca de Noé / Noah’s Ark imediatamente após sua chegada a Hollywood em 1926, conforme Harry Warner havia lhe prometido no encontro dos dois em Paris.

George O' Brien e Dolores Costello em A Arca de Noé

Entretanto, os planos da companhia mudaram e somente em 1928 o estúdio teve condições de entregar a Curtiz, sob a supervisão de Darryl F. Zanuck, a realização do projeto mais ambicioso da Warner. O mesmo Zanuck escreveu o roteiro, o recém-contratado Anton Grot desenhou os cenários e Hal Mohr foi convocado para ser o cinegrafista. Os interpretes principais eram Dolores Costello, George O’Brien, Noah Beery, Louise Fazenda, Guinn “Big Boy” Williams, todos em papeis duplos.

Dolores Costello

Dominado por um tema pacifista, o filme faz um paralelo entre a história bíblica de Noé e do Dilúvio e o drama de um soldado que descobre a honra e a coragem durante a Primeira Guerra Mundial.

O ponto alto da parte bíblica é a seqüência do Dilúvio. Para esta cena foi construído um tanque enorme, com quinhentas mil toneladas de água, que eram para ser despejadas num grandioso cenário babilônico. Este deveria ser destruído e centenas de figurantes morreriam esmagados ou afogados enquanto quinze cameramen filmavam a cena.

Mohr, que quando criança havia presenciado o terremoto de 1906 em São Francisco, estava preocupado com os perigos físicos que poderiam ocorrer aos extras e disse isso a Curtiz. Como conseqüência, ele foi substituído por Barney McGill.

Curtiz subestimou os problemas técnicos de se jogar tanta água em cima de tanta gente. O despejo de água ficou fora de controle, causando a morte de três figurantes e ferimentos em muitos outros.

Apesar destes transtornos, o mérito cinematográfico de A Arca de Noé é incontestável e o filme foi o primeiro grande êxito de bilheteria de Curtiz na Warner.

George O' Brien e Dolores Costello em A Arca de Noé

O filme original era parcialmente falado e tinha 135 minutos, mas após s estréia, sua duração foi diminuída para 105 minutos. Em 1957, o produtor Robert Youngson organizou um relançamento, eliminando todas as cenas faladas e inserindo uma narração. Esta versão tem apenas 75 minutos. Finalmente, em 1990, o Turner Classic Movies restaurou o filme e voltou a incluir as cenas faladas que haviam sido cortadas na versão 1957, exibindo-a com 99 minutos.

A versão que ví recentemente é a restaurada pelo TCM, mas foi ao assistir no cinema em 1962 a versão de 1957, que pude contemplar pela primeira vez a formosura de Dolores Costello. Dolores era filha de um astro da cena muda, Maurice Costello, que os fãs apelidaram de “Dimples” por causa de suas covinhas e irmã de outra atriz, Helene Costello, estrela de Lights of New York / 1928, o primeiro filme todo falado no sistema Vitaphone.

Dolores conheceu John Barrymore durante a filmagem de Don Juan / Don Juan / 1926, quando ele ainda mantinha um romance com Mary Astor. Impressionado pela beleza daquela jovem loura com aparência aristocrática, Barrymore acabou se casando com ela e tiveram dois filhos, Dolores e John Drew, que se tornaria ator e pai de Drew Barrymore.

Os dois artistas fizeram juntos, A Fera do Mar / The Sea Beast / 1926 e Quando o Homem Ama / When a Man Loves / 1927. A filmografia de Dolores tem pouco títulos expressivos, sendo os mais famosos Um Garoto de Qualidade / Little Lord Fauntleroy / 1936 de John Cromwell e Soberba / The Magnificent Ambersons / 1942 de Orson Welles.

Tim Holt, Dolores Costello e Joseph Cotten em Soberba

Dolores era chamada de “The Goddess of the Silent Screen” e foi sem dúvida uma das atrizes mais lindas do cinema silencioso.